Oito da manhã, pelos buracos de Luanda.

Buzinam pela esquerda, pela direita, por cima, por baixo. Barulho, confusão, mosquitos que já a estas horas atazanam o juízo e que acabam as suas vidas irritantes, espalmados entre duas mãos sanguinárias.

A “rádio de confiança” emite a «Manhã Ecclésia», um programa de informação. O trânsito está parado. Miúdos ziguezagueiam por entre os carros numa tentativa de vender os mais variados produtos – lenços de papel, ventoinhas, cadeados, televisões portáteis e tudo o que a imaginação conseguir conceber. A todos diz-se que não, ao mesmo tempo que se trancam discretamente as portas. Os carros avançam.

Prontamente, meteoritos azuis e brancos surgem de todos os lados, num autêntico ensaio geral do apocalipse. Chamam-lhe candongueiros, um nome pomposo para um calhambeque também conhecido por “táxi”, onde o lema é, por certo, “quem se suicidar primeiro, alcançará a felicidade eterna”. Nesta verdadeira máquina mística viaja, amontoada, a grande maioria da população de Luanda, a 25 kuanzas o troço. Pelo preço bem vale a pena fechar os olhos, ouvir os omnipresentes kizomba e kuduro debitados a máximo volume e acreditar que o destino ainda nos reserva mais uns diazinhos de vida. O “mete aqui”, “mete ali”, o “roça no muro”, o “sobe o passeio”, o “acerta no peão”, o “ultrapassa pela direita” e o “cala a boca, besta” aumentam a adrenalina das aventureiras gentes de Luanda.

Depois de cinco segundos de movimento, os carros imobilizam-se novamente. Há que ter paciência… ou talvez não. Buzina transformada em buzinão, guinada para o lado que estiver livre (ou menos ocupado), mete a primeira, acelera, trava, reduz, põe o carro no buraco, acelera, tira o carro do buraco, continua a acelerar, pára, buzina uma, duas, três vezes, acelera, mete a segunda, terceira, candongueiro à vista, foge!

Sem resistir aos constantes solavancos, o “mata-bicho” (também conhecido como pequeno-almoço) embarca numa dança alternada entre o estômago e a epiglote. Se bicho houvera que não tivesse morrido com os singelos pão e café, decerto não resistiria novamente, perante tamanha carga de porrada que as ruas da cidade oferecem. Mata-se e enterra-se então o bicho nesta montanha-russa, que depressa se transforma em gôndola veneziana, quando os buracos se enchem com as águas das chuvas e com os desperdícios da labuta nocturna de bexigas e intestinos urbanos.

Momento de publicidade no «Manhã Ecclésia» – “suavemente bésame yo quiero sentir tus labios besándome otra vez”. Dança-se dentro do carro a salsa caliente que a “rádio de confiança” oferece como pano de fundo de um anúncio de uma marca de papel higiénico, também ele suave, ai pois não! Aguarda-se com expectativa a anedota seguinte. Começa a soar, então, um som assustador: “beba o vinho Tuga, o verdadeiro vinho português, produzido com as melhores castas de Portugal”. Segue-se uma música horripilante, até que a voz grave e quente lança novamente um sentido “vinho Tuga, o verdadeiro vinho português”.

Acabado o momento de humor da manhã, os sentidos abrem-se ao calor deste sol que torna ainda mais fedorentas as montanhas de lixo que apodrecem nas valas e nas ruas da cidade. Magnificentes construções de podridão, onde decerto jazem garrafas de vinhos aportuguesados e de papel outrora suave.

Mas o lixo em Luanda tem os dias contados, no sentido literal da expressão. Num acesso de energia, a Comissão de Gestão de Luanda, um órgão criado às pressas depois da demissão do antigo governador provincial, e dirigido pelo já Ministro das Obras Públicas e já general, Higino Carneiro, prometeu fazer desaparecer o lixo da cidade. Se se tiver em conta o inspirado instante em que o Presidente da República em pessoa lançou o prazo de seis meses para “uma Luanda mais limpa”, no momento em que se escrevem estas palavras, faltam 77 dias para a porcaria desaparecer das ruas.

Entretanto, crianças, jovens, velhos, e o pessoal da ternura da meia-idade vão dando uma ajudinha, recolhendo todos os dias, sem descanso, algum deste lixo que abunda em Luanda. No exercício deste trabalho sem contrato, vão retirando o que lhes mata e alimenta o bicho. O sol aquece…

Entre descrições de caminhos alternativos, o carro lá prossegue na sua marcha heróica pela urbe capital de Angola, ficando pouco a pouco indiferente a tudo o que impede o avanço “normal” das quatro rodas. Nesta cidade, uma injecção de cinco minutos de realidade basta, para anestesiar os olhos, boca, mãos e nariz. E é assim que, violado na capacidade de percepção, mais ou menos vivo, mais ou menos tonto, se chega ao destino. Que horas serão? O relógio “pura marca” comprado ontem na rua acusa: nove da manhã. O dia começa, então.

Pedro Cardoso (correspondente em Angola)