O segundo capítulo de Kill Bill é um reflexo óbvio de Tarantino. Desvairado, belo, intenso, romântico.

“Não há personagens boas nos filmes de Tarantino. Só há vilões.” É assim que David Carradine, o Bill da história, comenta a obra do realizador americano. E “Kill Bill” é isso mesmo. Não há bonzinhos, nem inocentes, antes muito desequilíbrio e pecado. Há diálogos, como só Tarantino os sabe deliciosamente construir e filmar, há despreconceito na aceitação de uma realidade desvirtuada, e há muito talento. De quem filma, de quem representa, de quem edita.
“Kill Bill volume 2” é sinónimo de classe. E aí, é impossível deixar de nomear o notável trabalho do oscarizado Robert Richardson como director de fotografia. Desde a toada kitsch dos primeiros minutos do filme, passando pela abordagem surreal característica dos filmes orientais de artes marciais, quando a acção decorre na China, até aos tons quentes das cenas finais no México, Richardson dá um tratamento específico às imagens consoante os imperativos da história. Durante o sub-capítulo em que a personagem de Thurman vai aprender com o mestre Pei Mei (Gordon Liu), o tratamento da imagem é manifestamente dominado pelos tons brancos, a espreitar o angélico. Como se de uma realidade surreal se tratasse. É a semântica da imagem ao serviço do argumento.

Para além da dinâmica do que se vê, há a do argumento. Com menos cenas de luta, esta continuação tem momentos de autênticas batalhas de palavras. Genial o diálogo entre Black Mamba (Uma Thurman) e Esteban Vieho (Michael Parks). Tarantino alterna entre grandes planos de Parks e planos conjuntos dos intervenientes, num exercício de perspicácia. Cada imagem, com ou sem palavras, é texto e informação. “Ele deu-te um tiro na cabeça, mas eu seria menos cruel. Desfigurava-te.”, diz Vieho à assassina, tudo pronunciado na mais amena cavaqueira, como se de um elogio se tratasse. E a câmara assiste, também ela envolta de tranquilidade. E isto é Tarantino. Não há tensão onde devia estar, há desestabilização onde deve estar a harmonia. É não ter receio de procurar o quase absurdo.

O sangue continua presente, mas em doses menos massivas. Na primeira proposta, a sátira ao exagero dos filmes marciais, no que a violência diz respeito, fez jorrar litros de vermelho. Ainda assim, constata-se uma abordagem ao gore em tom de comédia. Numa das sequências de luta do filme, a outrora noiva de Bill arranca o único olho de Elle Driver (Daryl Hannah). Tarantino não resiste e oferece-nos um plano de detalhe do pé de Thurman a esmigalhar o olho. Poderia ser arrepiante, mas a plateia soltou sorrisos bem audíveis.

Não há regras. Comum noutras propostas do realizador, mantêm-se os flashbacks. Mantém-se o ridículo. O exagero. A dada altura, o filme é quase interrompido por uma sequência em que vemos uma data de miúdos numa escola primária. A acção pára e de repente estamos a assistir à professora a fazer a chamada dos alunos. Surge então a vez de Thurman levantar o dedo e lá está a actriz em ambiente bem pueril. De imediato, a história prossegue no preciso ponto em que foi interrompida por este intervalo. É provavelmente nestes detalhes que o autor de “Pulp Fiction” se destaca de tantos outros. Não é assim tão difícil querer quebrar paradigmas. O que não é fácil é evitar cair no nonsense. Tarantino sabe fazê-lo com o traço singular da sua visão do que é o cinema.

Depois, temos o romantismo. Sim, ele está presente. Já bem no fim do filme, Bill e Black Mamba trocam carinhos disfarçados de carícias nas mãos. Tarantino dá-nos esse grande plano, como que a dizer que é possível haver bondade no meio de tanta ruindade. Que é possível alguém (Black Mamba) guardar ainda um certo carinho porque quem (Bill) lhe fez muito mal. Por muito má que uma relação tenha sido, é possível haver um espaço na gaveta do coração para colocar religiosamente o que foi bom. Não é romântico Tarantino?

Germano Oliveira

Fotos: Site Oficial