Miguel Leão explica que se pode dividir as doenças raras em dois grupos muito amplos: aquelas que dizem respeito a uma dificuldade global de desenvolvimento, vulgo “atraso mental”, e aquelas que têm a ver com desenvolvimento psicomotor normal. A grande maioria destas doenças é genética, o que, de acordo com o presidente, torna o processo de aceitação mais complicado para os pais.
“É uma situação difícil por causa do estigma que os pais sentem, relacionado com o chamado complexo de culpa. A pergunta que eles colocam é: se é tão raro, porquê a mim?
Pais adoptam mecanismos de defesa
O especialista fala em mecanismos de defesa que os pais desenvolvem e relembra um caso que acompanhou directamente: “era um casal de um nível sócio-cultural muito elevado. A criança era o caso típico de um miúdo com todos os estigmas visíveis do síndrome de Down. Eu comecei a explicar aos pais e percebi que eles iriam arranjar todos os argumentos para aquilo não ser síndrome de Down, encontrando justificações para esses estigmas na herança genética da criança”.
E há alguma coisa a fazer para evitar essa atitude? O método parece simples, exagerar as consequências para que cada avanço signifique uma conquista: “Eu acentuava a ‘tinta negativa’ para eles não continuarem a racionalizar. Coisa que não fazia com alguns casais doutro nível, de zonas rurais, por exemplo. Esses casais sofriam menos do ponto de vista médico, isto porque as expectativas eram menores e, consequentemente, o sentimento de frustração pela diferença também é menor”.
Crianças com desenvolvimento psicomotor normal são as mais problemáticas
Na opinião de Miguel Leão, os casos de maior dificuldade são as crianças com desenvolvimento psicomotor normal, mas com uma doença progressiva. Isto porque, “a partir de certa idade, a criança tem percepção que a sua doença é de evolução irreparável e contínua. Quando ela tem três anos e tem dificuldade em subir escadas ainda não se apercebe, mas quando com seis ainda precisa de se agarrar ao corrimão ou quando na escola não pode brincar porque não consegue correr sem cair…”.
São crianças com capacidade de discernimento e sem perturbação do seu estado intelectual. São situações complicadas para os profissionais: “apenas a experiência pode ajudar os médicos a lidar com situações como esta”.
Como os pais lidam com as doenças raras
Nem todos os casos são iguais. Para o presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos, quando se trata de uma doença mais de foro intelectual, é mais difícil lidar com os pais, atendendo a que “a criança não tem percepção da degradação do seu estado”. A preparação destes pode ser tão complicada como díspar. “Grosso modo, quanto maior o desenvolvimento sócio-cultural dos pais, mais difícil é lidar com a criança”.
O nível mais baixo lida melhor com a situação. Para Miguel Leão, isto surge associado a uma das ideias fundamentais da paternidade: o “efeito-espelho”. Quanto maior o estatuto social que os pais julgam ter, pior é a forma como lidam com a situação. A acrescentar a isso, “alguns casais vivem muito em função de modas que fazem parte de um grupo de estereótipos que correspondem a pessoas com um nível social mais elevado. Pôr os filhos a fazer desporto, por exemplo.
Ter um filho intelectualmente “normal” mas que, fisicamente, não corresponde às performances que os pais projectam é uma frustração muito grande para essas pessoas, maior do que para outras cujas perspectivas e valores sociais não são desse tipo”, confirma.
Detecção da doença pode não ser possível
Não há uma altura exacta para detectar a doença, principalmente no período pré-natal. Em muitos casos é completamente impossível, já que o feto não apresenta mal formações. Na maioria, a criança até nasce sem problemas. O típico das doenças metabólicas é a criança nascer “normal” e a doença só se manifestar depois.
“Em relação a essas doenças que, como se sabe, são mal formativas, nós não temos terapêuticas específicas, tirando um ou outro exemplo, e fazemos apenas terapêutica sintomática”, afirma Miguel Leão.
Mas será que a medicina portuguesa está preparada para assegurar a eficácia terapêutica que doenças deste foro necessitam? “Tratando-se de doenças raras, não se justifica que num país da dimensão de Portugal se crie uma tecnologia própria para desenvolver alguns tratamentos ou o diagnóstico pré-natal”, refere Miguel Leão. Contudo, o médico não poupa elogios à medicina portuguesa: “não tenho dúvidas que Portugal está muito bem preparado, quer em formação médica quer em equipamento técnico. Temos um know-how humano e técnico do melhor nível.”