Comércio ilegal de armas, fraude fiscal, tráfico de influência e abuso de confiança são as acusações que recaem sobre o empresário francês Pierre Falcone.

Visado por um mandato de captura internacional emitido em Janeiro pelos tribunais franceses, Falcone é um dos centros do furacão conhecido como “Angolagate”. Segundo uma notícia adiantada há uma semana pela Rádio Renascença, o empresário caminha tranquilamente por Lisboa, gozando da complacência das autoridades portuguesas. De acordo com a emissora, Durão Barroso terá dado ordens para que Falcone seja vigiado, mas não detido.

A entrada em cena de Falcone na vida política e económica de Angola deu-se em 1992, altura a que remonta o caso “Angolagate”. Este processo, que viria a ser desvendado em 2000 pela justiça francesa, teve como pano de fundo uma série de negócios menos claros entre os governos de Eduardo dos Santos e do então presidente francês François Mitterrand.

“Angolagate”: petróleo por armas

Em 1993, falhado o processo eleitoral e rasgados os acordos de paz de Bicesse, a guerra que opõe o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) contra a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) avança no país. Aproveitando a desmobilização de efectivos das Forças Armadas Angolanas, os guerrilheiros de Jonas Savimbi ocupam cerca de 80% do território nacional.

A vitória cada vez mais próxima dos rebeldes obriga o governo angolano a pedir apoio internacional. Com o desmembramento do apoiante tradicional, a União Soviética, Eduardo dos Santos volta-se então para a França. Naquela ocasião, este país era governado por uma coligação presidida por François Mitterrand.

De acordo com “Os Homens do Presidente”, um relatório de 2002 elaborado pela organização não governamental (ONG) Global Witness (GW), sobre a gestão dos lucros do petróleo angolano, o pedido de Eduardo dos Santos foi encarado por França como a grande oportunidade para fazer frente à “crescente paranóia (…) acerca do controlo total do sector petrolífero angolano por parte dos EUA”.

Segundo esta ONG britânica, como forma de garantir o êxito total, este processo foi desde o início encaminhado por vias não oficiais. Na altura, o Ministro da Defesa francês, figura que teria que autorizar o apoio militar ao governo angolano, era considerado um dos “principais apoiantes da UNITA em Paris”.

Encontrados os intermediários do processo – Falcone e o russo Arkadi Gaydamak – começou então a acção subterrânea. Jean-Christophe Mitterrand, ex-conselheiro presidencial para África, Jean-Bernard Curial, na altura responsável do Partido Socialista (PS) francês pela África Austral e o Ministro do Interior Charles Pasqua, foram, de acordo com a justiça francesa, os impulsionadores do processo.

Entre 1993 e 1994, segundo a investigação de vários jornais franceses, Falcone e Gaydamak facilitaram o processo de venda de armas ligeiras e pesadas dos países do leste europeu para Angola. Seiscentos e trinta milhões de dólares é o valor aproximado dos cálculos que envolveram a comercialização do armamento.

Sem dinheiro para pagar directamente esta quantia, o governo de Eduardo dos Santos delineou, de acordo com o mais recente relatório da GW, «Hora de Transparência», “um sistema de empréstimos com juros altos, garantidos pela futura produção petrolífera”. Este documento, publicado em Março último, detalha o processo de pagamento: “os que organizavam o fornecimento de equipamento militar recebiam um valor inicial, à cabeça; depositavam este dinheiro e encomendavam as armas; um empréstimo garantido por petróleo era então obtido dos bancos franceses e desembolsado a partir de Paris para cobrir os restantes custos e honorários.”

O recente depoimento de Jean-Bernard Curial, no âmbito do processo «Angolagate», vai de encontro ao relatório da GW. O ex-responsável do PS francês para a África Austral acrescenta ainda que o sistema de pagamentos e aquisições “offshore”, “tornou-se uma enorme máquina de fazer dinheiro” para Falcone, Gaydamak e alguns líderes angolanos.

O novelo das relações escondidas entre Angola e França efectuadas entre 1992 e 1994, foi desenrolado em 2000 pela Brigada Fiscal Francesa. Aquela que iniciou como uma mera investigação sobre possíveis evasões fiscais no comércio de armas acabou por se tornar um escândalo que envolvia o tráfico ilegal de armamento e lavagens de dinheiro.

Sob a mira das autoridades, estavam altos dignitários dos dois estados. Jean-Christophe Mitterrand, Charles Pasqua e outros membros do governo francês foram acusados de “comércio ilícito de armas, tráfico de influências, abuso de confiança e fraude fiscal”. A detenção de Jean-Christophe, filho do presidente Mitterrand, em Dezembro de 2000, catapultou o «Angolagate» para a primeira linha da imprensa mundial.

Em sequência das mesmas acusações, Pierre Falcone foi detido a 1 de Dezembro de 2000. Exactamente um ano mais tarde foi libertado depois do pagamento de mais de 14 milhões de dólares. Aquela que foi estimada como sendo a maior fiança de sempre em França, foi mais tarde reduzida para cerca de um terço, depois de uma acção de recurso interposta pelos advogados do empresário. Segundo o jornal francês «Nouvelle Observateur», citado no relatório «Hora de Transparência», esse valor viria ser pago “pela empresa estatal de petróleo angolana Sonangol, para demonstrar a solidariedade de Angola para com Falcone”.

Mais além do “Angolagate”

Para a Global Witness há indícios que este empresário tenha estado envolvido em outros negócios ilícitos com o estado angolano.

Segundo as investigações publicadas no «Hora da Transparência», a GW afirma que “pelo menos” um outro contrato de fornecimento de armas foi levado a cabo entre 1995 e 1996. O relatório indica ainda que o valor desta operação deverá rondar os 44 milhões de dólares. Para a ONG, Falcone foi o mediador do processo.

No entanto, os negócios entre o empresário e Eduardo dos Santos não se limitaram ao comércio de armamento, segundo a GW. De acordo com as investigações desta ONG britânica, de “um modo semelhante de financiamento e fornecimento”, Falcone forneceu ao exército angolano, em regime de “monopólio”, bens essenciais entre os quais comida e medicamentos. O negócio terá sido empreendido através da CADA – Empresa Angolana de Distribuição Alimentar, estrutura integrante da Brenco International, cujo presidente é o empresário francês. Segundo o Público de 14 de Janeiro de 2000, de acordo com fontes próprias “o contrato da CADA foi processado sem qualquer forma de concurso público”.

A lista de conexões entre Falcone e Angola envolve também acções de intermediação na negociação da dívida deste país à Rússia. De acordo com o jornal suíço «Le Temps», actuando como representantes do governo angolano, Falcone e Gaydamak terão conseguido reduzir a dívida em cerca de 70%, de cinco mil milhões para 1,5 mil milhões de dólares.

No entanto, várias fontes revelam que o processo de pagamento desta quantia não foi claro. O «Le Temps» adianta que “parte do dinheiro da dívida terá sido desviado para contas de altos responsáveis dos dois países [Rússia e Angola], em vez de ser depositado a favor do estado russo, que era teoricamente o detentor da dívida”. O jornal «Público» acrescenta ainda, num artigo publicado em Março último, que “dos 773,9 milhões de dólares que deviam ser reembolsados imediatamente, segundo o acordo, apenas 161,9 milhões foram pagos ao ministro das Finanças da Rússia.”

Actuando como intermediários na negociação da dívida, Falcone e Gaydamak terão também lucrado com o processo, de acordo com a GW. A ONG britânica aponta que nas listas de transferência do dinheiro da dívida, Falcone e a sua empresa Brenco International receberam cerca de 88 milhões de dólares. Por seu lado, Gaydamak viu a sua conta bancária engrossada em 60,5 milhões dólares.

Pedro Cardoso (correspondente em Angola)