O futebol deu ontem mais uma prova de que não é apenas uma força aglutinadora de tensões e conflitos entre seres humanos.

Mais do que isso, consegue ser um manifesto de solidariedade e compreensão em torno de quem mais precisa.

Assim aconteceu ontem no Estádio Cidade de Coimbra, onde se realizou um jogo de solidariedade com João Manuel, ex-jogador da Super Liga, que, após ter terminado a sua carreira aos 37 anos, se viu confrontado com uma doença do foro neurológico (esclerose múltipla) que o condiciona visivelmente, tanto física como psicologicamente. Infelizmente, não foi ainda encontrada a cura para esta doença.

É de enaltecer a presença de todos os clubes do primeiro escalão do futebol português, representados por jogadores, responsáveis técnicos e/ou dirigentes, prova de que o facto de se encontrarem numa fase altamente competitiva da época não impede as instituições desportivas de manifestarem o seu carácter solidário.

Apesar do valor da iniciativa não poder ser colocado em causa, a organização do jogo – da responsabilidade do Sindicato dos Jogadores – não está totalmente de parabéns, tendo cometido uma falha imperdoável. Ao mesmo tempo que os 40 minutos (simbólicos) de jogo eram disputados, a Sportv transmitia o encontro Chelsea – Barcelona, que, não só envolvia a presença de cinco portugueses (Paulo Ferreira, Ricardo Carvalho, Tiago, Deco e José Mourinho), como possuía o factor “competitividade”, importante elemento de aliciamento de audiências. Assim, a assistência no Cidade de Coimbra rondou as mil pessoas, número escasso para um jogo que visava tão importante objectivo como é o de ajudar e homenagear quem passa por graves dificuldades, mas que já havia dado “corpo e alma” ao chamado desporto-rei. Não poderia o jogo de Coimbra ter sido agendado para uma outra data?

O futebol continua a ser uma indústria, muito longe das funções de entretenimento, de inclusão social e de fomento de valores sociais, para as quais foi, originalmente, criado. Em quase todos os jogos, independentemente do país no qual se disputam, assiste-se, invariavelmente, a cenas lamentáveis, já se tendo tornado prática comum as agressões físicas e verbais, tanto dentro como fora do campo de jogo, as quais não contribuem em nada para a dignificação do desporto e, muito menos, da imagem pública dos seus intervenientes, cujos comportamentos são seguidos e copiados por milhões de pessoas, que seguem os seus ídolos como se de deuses se tratassem.

Mas nem isso é suficiente para enegrecer o evento que, além de homenagear João Manuel enquanto homem e desportista, conseguiu chamar a atenção para o facto de nenhum de nós estar completamente livre de sofrer um destino parecido. Se um atleta de alta competição – muitas vezes considerados exemplos a seguir, dado o rigoroso regime de vida a que estão obrigados – se pode tornar vítima de um vírus capaz de o incapacitar, porque não o cidadão comum?

No final, o que fica é a imagem de que os ídolos que todos os fins-de-semana se debatem como gladiadores sobre um manto verde são também eles seres humanos capazes de se emocionar e de demonstrar sensibilidade face ao drama de um colega de profissão. Irá este exemplo ser seguido pelos adeptos da modalidade com tanta veemência e admiração como o são aqueles menos aconselháveis a que estamos habituados a assistir dentro das quatro linhas?

Daniel Brandão