“Como é que um bocado de pau, que representa um homem morto há tantos anos, incomoda tanta gente?”. A interrogação é do padre José Maia, Vigário da paróquia da Senhora da Areosa, no Porto, quando confrontado com a carta enviada pela Associação República e Laicidade à Ministra da Educação, solicitando “uma indicação clara às escolas de todo o país de que a presença de crucifixos nas instalações escolares, assim como a realização de rituais religiosos na escola pública, constituem situações de ilegalidade a que se deve pôr cobro imediatamente”. A associação publicou esta quarta-feira, na Internet, um dossier com imagens e excertos de jornais documentando a situação.

Para José Maia, a polémica trata-se de uma falsa “causa fracturante”. “Posso ir a qualquer debate numa televisão mostrar que isto é inconsequente, uma palermice e uma falta de sentido comum”, desafia. “Há liberdade religiosa há muitos anos”, refere o padre, para quem a predominância de símbolos católicos se deve ao número de crentes desta religião em Portugal. “Portugal é o país da Europa onde há 97% das pessoas que se declaram cristãs”, afirma o pároco, que considera que a iniciativa da Associação República e Laicidade não passa de uma “provocação parola a quem professa direito de ter uma religião”. “Para termos um Estado laico temos então de deitar abaixo o Mosteiro dos Jerónimos”, exemplifica José Maia, que afirma ainda que o assunto em discussão não o preocupa na paróquia, onde a prioridade são “os problemas reais dos portugueses”.

A defesa da “não confessionalidade do Estado”

Opinião bem diversa tem Ester Mucznik, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa e membro da Comissão da Liberdade Religiosa, órgão independente de consulta da Assembleia da República e do Governo. Para Ester Mucznik, a comparação de José Maia é uma “estupidez”. “Tem de se distinguir entre a prática da religião e a cultura”, afirma, reafirmando “a separação entre religião e Estado”, confirmada pela lei de liberdade religiosa, que reconhece “outras religiões em Portugal”, muito embora a” Igreja Católica seja dominante”. Mas tal não implica que “os símbolos cristãos, como todos os outros, sejam postos em edifícios públicos”, esclarece Ester Mucznik, para quem o princípio é o da “não confessionalidade do Estado”.

O assunto será agora discutido na Comissão da Liberdade Religiosa, que segundo Ester Mucznik “serve precisamente para tratar das pessoas que se sentam lesadas nestes casos. “A minha posição é que se deveria fazer uma recomendação a quem de direito no sentido de procurar aplicar a lei, ou seja, a separação da religião e do Estado”, conclui.

O Portugal católico

Segundo José Azevedo, sociólogo e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), o que está em causa é um “confronto político entre diferentes visões do que deve ser a escola”. “Há uma disputa entre as igrejas dominantes, que aceitam a liberdade religiosa mas acham que deve haver uma maior dimensão da tradição cultural católica, e os que defendem que tudo o que seja público deve ser laico”, esclarece. Na opinião de José Azevedo, há também pessoas que tentam situações intermédias no confronto entre a religião e o Estado, “defendendo situações em que não se podem ignorar as tradições mais enraízadas”.

“O que a Associação República e Laicidade tenta é que não se fechem os olhos a situações que continuam a existir”, conclui José Azevedo, que vê na sociedade portuguesa uma tendência para “deixar passar essas situações”, mesmo que elas violem a lei. “Em Portugal ainda há uma socialização grande por parte da Igreja Católica, apesar de uma grande redução da prática religiosa”, diz o professor da FLUP, para quem ainda há “uma grande tradição em termos de rituais, como o baptismo e o casamento, mesmo quando as populações são laicas”.

João Pedro Barros