“A Queima existiu e vai existir sempre. O que se pode dizer é que a Queima exteriorizou-se de uma maneira antes do 25 de Abril, não se exteriorizou durante a revolução, e depois do 25 de Abril a Queima exteriorizou-se novamente para se aproximar mais da forma como a vivemos agora. A Queima das Fitas é alegria e essa houve sempre. A diferença está na forma como esta se foi exteriorizando”. Quem o diz é o actual “Dux Veteranorum” da Universidade do Porto (UP), Américo Martins.

“A essência da Queima das Fitas é o espírito da festa, da alegria de concretização do objectivo que é o curso e da juventude e essa não se alterou. Mas na parte ‘plástica’ da queima houve mudanças. O mundo evoluiu e isso reflecte-se na Queima das Fitas: o cortejo, a maneira de vestir e de estar também é diferente; a comunicação social – antigamente, a imprensa não se interessava por estes assuntos. Essencialmente, há uma grande diferença de velocidades entre os anos 40 e os dias de hoje”, diz.

A tradição da Queima das Fitas do Porto remonta ao final da década de 40 do século passado, mas já antes havia a “Festa da Pasta”. O mesmo homem responsável pela primeira “Queima” em Lisboa, no ano académico de 1944-45, veio fundar no Porto essa celebração, em 1949-50. Lisboeta de gema, Flávio Serzedello veio para o Porto para acabar o curso de Farmácia e por aí ficou por gostar da vida académica. Durante 32 anos dedicou-se mais ao jornalismo, e mais tarde à família, do que ao curso que o tinha conduzido à Invicta.

A Queima das Fitas repetiu-se até ao ano de 1972 “sempre da mesma maneira”. Antes do 25 de Abril, os dias de Queima das Fitas eram vividos “primeiro com a bênção das pastas na Sé Catedral, presidida pelo Bispo da Diocese; cortejo no dia seguinte; e nos dias que se seguiam havia sempre chás dançantes na sala holandesa do antigo Palácio de Cristal. Também havia o Baile de Gala no salão nobre da Faculadade de Medicina (actual ICBAS)”. Um Baile de Gala que também era camado “baile de gola”: “não tínhamos dinheiro para pagar a entrada no baile e entravamos puxados pela gola”, explica o antigo “Dux Veteranorum” da UP.

No dia seguinte, fazia-se a garraiada, normalmente, na Póvoa de Varzim, e o fim de festa era no casino. Serzedello conta que chegou a participar numa garraiada. “A minha experiência de toureiro fez-se com uma almofada atrás e outra à frente, e ao primeiro olhar do touro, bati os recordes todos de velocidade até me atirar para a trincheira.”, recorda com um sorriso nos lábios.

A partir do início da década de 50, foi criado o Sarau de Arte da Queima das Fitas, oferecido em honra dos mestres. Um sarau que incluía actuações do Orfeão Universitário, do Teatro Clássico Universitário do Porto e, no fim, recitativos.

A Queima começou por ser vivida apenas pelas quatro faculdades existentes na altura: Ciências, Farmácia, Engenharia e Medicina, e mais tarde, em Economia. Hoje, a festa da Queima das Fitas conta com um número incomparavelmente maior de instituições e pessoas envolvidas. No cortejo deste ano estiveram representadas 43 instituições de ensino superior do Porto.

A revolução da Queima

Flávio Serzedello (“o eterno Flávio”, como o costumam tratar no meio) diz-se um “tradicionalista académico”. “A tradição não tem nada a ver com conservadorismo. Houve quem tentasse, sobretudo de 1972 a 1975, confundir tradição académica com conservadorismo. Foi por isso que no primeiro espectáculo que o Orfeão Universitário do Porto levou a efeito, no antigo Rivoli, em 1976, os rapazes e raparigas foram cantar de fato-de-macaco, em vez de cantarem de capa e batina como estava consubstanciado em lei”, diz.

“O traje académico queria significar que somos todos iguais, todos estudantes, não há ricos nem pobres, nem nobres nem plebeus. Hoje o traje não está diferente. As pessoas é que colocam diferenças onde elas não deveriam existir”, continua.

Flávio Serzedello lembra um dos acontecimentos mais marcantes da Queima em que “pôs as fitas”, em 1972, no tradicional “banquete que os quarto-anistas ofereciam aos finalistas”. “Houve um apedrejamento da faculdade por quatro indivíduos que queriam impor a sua maneira de pensar a uma faculdade inteira (cerca de 600 alunos). Queriam acabar com a nossa festa. Acusavam-nos de sermos reaccionários o que é uma mentira, os estudantes não são reaccionários, mas tradicionalistas das suas praxes académicas. Não obrigamos ninguém a pensar de maneira diferente da sua”.

Flávio Serzedello explica que o significado da Queima das Fitas nunca se perdeu. “No ano seguinte, e até 1976, não houve nada. Fazíamos a nossa festa dentro das faculdades. Não se fazia nada nas ruas, porque vivia-se um clima de revolução com bombas por todo o lado, apedrejamentos…”, diz.

A ‘Queima’ volta à rua

A “exteriorização” da Queima’ volta dois anos depois da revolução de Abril de 1974. A partir de 1976, a Faculdade de Letras teve os primeiros finalistas. Nessa altura, “as raparigas de Letras foram apresentar cumprimentos ao Presidente da Câmara do Porto, Capelo Pires Veloso. E a partir de 1977, voltou a fazer-se a Queima das Fitas e sempre da mesma maneira: Serenata Monumental na Faculdade de Ciências”, explica Flávio Serzedello.

Inicialmente, a serenata era celebrada do lado da actual praça dos “Leões”, mas teve que passar para o lado da Cordoaria devido à proximidade do Hospital Santo António e à constante passagem de ambulâncias que interrompiam a serenata.

No dia seguinte, a bênção das pastas na Sé Catedral e, à tarde, os novos fitados ofereciam o banquete aos finalistas em todas as faculdades. Nos dias seguintes havia “chás dançantes” organizados por duas faculdades, no Palácio de Cristal.

A Queima das Fitas contava ainda com o cortejo, o Sarau de Arte, o Baile de Gala e, às vezes, a Gincana, a garraiada, e depois, o fim de festa no casino. Contudo, a festa dos finalistas nunca deixou de ser uma festa de toda a academia e da cidade do Porto em geral.

Letícia Amorim