Encenar uma peça de Shakespeare era “um desejo antigo” para João Garcia Miguel. Ele explica: “É preciso mexer nos mortos, perder o medo, para usufruir daquilo que eles nos deixaram”. O resultado, “Burgher King Lear”, estreia hoje, quinta-feira, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e é uma adaptação bilingue (inglês, legendado, e português) de “Rei Lear” de Shakespeare. Estará em cena até domingo.

Segundo João Garcia Miguel, esta obra é um exemplo “da capacidade única e extraordinária que o teatro tem de fazer-nos viajar dentro de nós próprios através das outras pessoas”. “O teatro é perigoso, extremamente invasivo”, “ajuda-nos a inventar o humano através da confrontação com o que é mais negro”.

O encenador levou alguns anos para ganhar a capacidade de “pegar num clássico tão potente como é o Shakespeare”. “Sobreviveu 400 e tal anos e isso é algo invejável”, diz.

A curiosa associação entre hambúrgueres e Shakespeare é assumida como uma “provocação” e uma desconstrução da obra original. O texto “teve um propósito no momento em que foi escrito”, e, se não for adaptado aos tempos de hoje, “perdia um pouco da sua pertinência”.

Do original fica a ideia principal: “Todos nós sentimos reis no nosso próprio mundo e queremos muitas vezes abandonar esse mundo, abandonar aquilo que nós próprios somos”. E Lear faz precisamente isso, sendo um personagem em que “a coragem se confunde completamente com a loucura, o que o faz perder pessoas queridas e a si próprio”.

Confronto de forças

A história desenrola-se a partir do momento em que o rei Lear decide abdicar do trono e dividir o reino pelas suas três filhas, de forma proporcional ao amor pelo pai que cada uma conseguir exprimir. Uma delas, Cordélia, recusa-se a bajular o pai em troca de uma recompensa e Lear bane-a do reino, “uma decisão que acaba por ser uma tragédia tão grande que morrem 13 pessoas”, conta o encenador.

João Garcia Miguel escolheu concentrar as inúmeras personagens da peça em dois actores – Anton Skrzypiciel e Miguel Borges – porque um personagem “não tem limites fixos”. Além disso, nesta obra existe um confronto entre duas forças, personificadas pelas personagens dos actores: “uma mais racional e outra eventualmente mais selvática”.

Vestiu ainda os actores de palhaços, uma opção que não consegue explicar bem, mas que ajuda na transformação dos actores nos diversos personagens. Os palhaços “condensam comédia e tragédia de uma forma profunda, muito atractiva”, diz. “A palavra ‘palhaço’ não remete só para a ideia do riso; existe também algo de miserável”.