Originário de uma família alentejana, Filipe La Féria passou a sua infância em Serpa, na Vila de S. Bento. Bastante jovem, mudou-se para Lisboa, onde deu os primeiros passos como actor, mas cedo tornou-se encenador.

Em entrevista ao JPN, o autor, encenador e cenógrafo revela que “o bom teatro modifica sempre a nossa maneira de pensar”. Diz que trabalhar para o grande público exige muito mais do que fazer outras produções. Um esforço que compensa porque “um povo que gosta de si próprio gosta de teatro“.

“Música no Coração” estreia hoje, terça-feira, no Teatro Rivoli, no Porto.

Em 1963, começou a sua carreira no teatro. Tinha então 18 anos. Por que é que escolheu esta profissão?

Eu comecei até antes, aos 16 anos na RTP, numa peça da Páscoa, do Strindberg. Por que é que eu comecei? Era o meu sonho. Sou de uma família alentejana que nada tem a ver com o teatro, mas lembro-me que, em pequenino, fazia já uns teatros numa caixa de sapatos. Recortava as caricaturas que havia no “Diário de Notícias” e eu próprio fazia os teatros com aqueles bonecos, numa caixa de sapatos que transformava num teatro. Passava o dia todo a escrever as peças para aqueles bonecos representarem. Depois, passados 40 anos, em vez de serem bonecos são pessoas humanas. São mais difíceis, mas também mais fascinantes.

Conheceu o teatro antes e depois do 25 de Abril. Que mudanças houve no teatro com a revolução?

Houve bastantes, sobretudo não haver censura. Hoje há outra espécie de censura: há uma censura económica, mais sofisticada. Mas o fascismo era um sistema muito brutal. Ainda bem que vivemos na democracia, mesmo com os defeitos todos e a aturar estes políticos que a gente atura, porque a ditadura era uma coisa horrível.

Lembro-me que uma peça do Lope da Veiga teve 14 ensaios de censura, e depois não ia à cena. O teatro é sempre o barómetro de uma sociedade. O povo está muito desiludido com a política, com os políticos, mas nada é comparável ao obscurantismo em que se vivia.

O teatro é uma forma de intervenção na sociedade?

O teatro é sempre uma forma de intervenção. O teatro educa e diverte. Um espectador tem que sair sempre mais rico do que entrou no teatro. O teatro é o grande espelho que se põe em frente do homem, para o homem se reflectir nele e ver o seu rosto. O bom teatro modifica sempre a nossa maneira de pensar.

Então, o teatro alterou a sociedade antes e depois do 25 de Abril?

Antes também se fazia muito bom teatro. Antes do 25 de Abril, tínhamos uma companhia do Teatro Nacional, dirigida pela Amélia Rey Colaço, que nunca mais houve. Fazia-se talvez um grande teatro, e às vezes com uma grande resistência, porque era muito difícil passar na censura. Hoje estamos tão pobres que não temos nenhuma companhia de ópera, nem um teatro nacional.

De facto, não podemos também diabolizar muito o que se passou e depois apresentar uma pobreza tão grande agora. Antes tínhamos companhias extraordinárias e faziam-se espectáculos extraordinários. Eu ainda tive o ensejo de ver a época de ouro do teatro português, os grandes actores: o João Villaret, o Vasco Santana, a Laura Alves, que eram génios insuperáveis. Hoje teremos talvez a Eunice [Muñoz] e o Ruy de Carvalho como os últimos bastiões dessa geração de ouro do teatro português. Eles viveram num regime adverso à arte, embora este também seja um bocado adverso à cultura. Mas fizeram um teatro extraordinário.

Começou como actor, e depois voltou-se mais para o lado dos bastidores. Passou a encenador, autor, cenógrafo…

Pois, o que gosto é de idealizar, de escrever. Ter uma página branca e, depois, com os actores, com os técnicos, com as pessoas que me acompanham, transformar em espectáculo as palavras.