“Às 23h00 o amor acaba na cave”, lê-se à entrada do Pinguim, conhecido bar do Porto, num desfile de postais que fazem a publicidade a espaços nocturnos e a eventos culturais.

No andar de cima, clientes habituais e turistas conversam entre o frio húmido das paredes de pedra, o fumo dos cigarros e a música morna dos acordes de uma guitarra. A maioria não sabe que hoje, uma quinta-feira de Novembro, é a noite dedicada à poesia. Há 20 anos que estas noites dão à rua de Belmonte um secretismo de contornos boémios.

Rui Cepranger, organizador da noite, actor e encenador, conta como a escura e tortuosa rua de Belmonte era nas décadas de 80 e 90 o ponto de encontro de muitos intelectuais noctívagos. “Em 88 e 89, havia verdadeiros engarrafamentos na rua”, recorda. Carlos Paredes, Eunice Muñoz e Mário Viegas são exemplo de pessoas do mundo do teatro, música e poesia que já estiveram nas quintas-feiras de poesia.

“Hoje serve-se amor como dobrada fria”

É no andar de baixo que tudo acontece: as mesas e cadeiras vermelhas estão dispostas de forma aleatória, despidas de qualquer ordem geométrica. Livros de poesia portuguesa – Pessoa, Teresa Noronha, Guilherme Jorge, Eugénio de Andrade, antologias poéticas – são colocados sob as mesas nuas, ao lado de cinzeiros e os copos que vão sendo pedidos.

Ao contrário do andar de cima, aqui não há música ambiente. Cepranger defende que a poesia “tem a sua própria musicalidade, um ritmo próprio”. “O tema da noite é o desamor. A semana passada foi o amor”, conta.

A ideia, explica, enquanto distribui o resto das obras, surgiu de um poema de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. No poema, o amor é descrito de forma bastante realista e física. E, tal como a “dobrada fria de Álvaro de Campos, também o ambiente na cave é bastante íntimo, táctil, e, no entanto, secreto.

O espaço e as luzes baixas que escondem os olhares permitem que, a partir de um acto de introspecção, a poesia passe a um acto conjunto de partilha, através da escuta, da declamação e da discussão em público. “As pessoas vêm para ouvir poesia sobretudo, muito mais do para declamar. Mas há sempre duas ou três pessoas que se sentem mais à vontade e avançam. Se não isto transforma-se num monólogo”, explica, enquanto acende um cigarro sobre um livro de Pessoa.

Poesia portuguesa

As sessões dão primazia à poesia portuguesa. Em dias bons, a sala chega a ter 100 pessoas. Hoje encontram-se apenas 10 pessoas – um casal, dois participantes habituais, e alguns jovens que ali apareceram por curiosidade.

Um deles, João Soares, de 20 anos, estudante de cinema e vídeo, veio por acaso. Estava no andar de cima com os amigos e resolveu espreitar, motivado pela ideia de ver alguém declamar. “Achei um espectáculo, nunca tinha visto um recital de poesia”, diz.

Senta-se com um amigo que o veio acompanhar. De mãos tímidas nos bolsos, tem na cara a expressão de quem só está ali por acaso. No entanto, confessa-se um apaixonado pela poesia de Pessoa, António Nobre e Mário de Sá Carneiro.

Às 23h30 a sessão começa. Os poemas são declamados por ordem cronológica. Sentado num banco alto, encostado à parede, debaixo de um foco de luz ténue, Rui Cepranger inicia o recital com Almeida Garrett.