O cenário é “O Pátio”, poiso de artistas de Vila do Conde. valter hugo mãe está à janela a beber chá. Em entrevista, o galardoado com o Prémio José Saramago 2007, com o romance “o remorso de baltazar serapião”, fala sobre a poesia e a arte, as influências, a relação com Deus e o novo romance em preparação.

Nasceu em Angola em 1971. Apesar do pouco tempo que lá viveu nota-se uma ligação forte ao país.

Sinto uma ligação que advém, sobretudo, de um certo respeito e da consciência de que nós portugueses somos um povo de “ir lá fora”. Isso faz-me manter sempre presente a ideia de que, mais tarde ou mais cedo, haveríamos de ser um povo de alguém “vir cá para dentro”. Ter nascido em Angola desenvolveu em mim uma consciência cívica, humanista, de aceitação das diferenças.

No liceu, escreveu uma redacção sobre o 25 de Abril, texto que, como já disse, o “ajudou a aceitar as diferenças”. Considera-se uma pessoa de causas?

Sim. Penso que a melhor maneira de defender uma causa é acreditar nela ao ponto de, em cada momento ou opção da nossa vida, termos em conta determinados princípios. É isso que faço. Nem sempre visto camisolas e vou para a rua, mas aquilo em que acredito, acredito dentro da minha casa, no íntimo dos meus assuntos. Se todos acreditássemos em algo e correspondêssemos a isso nas nossas escolhas diárias, talvez não fosse necessário andarmos de camisola na rua porque o problema estaria resolvido na casa de cada um.

Licenciou-se em Direito. Como saiu dessa área?

A partir do quarto ano tomei consciência de que o curso não tinha a ver comigo. Porém, tirei-o numa privada, custou dinheiro aos meus pais, e não tive imediatamente a coragem de deitar o curso fora. Tive também a ideia, que é certa, de que o Direito serve muito mais do que exercer uma profissão jurídica. É uma escola para tudo, para a leitura, para a escrita. O rigor, ao nível de interpretação dos textos, é altíssimo.

Completei o estágio enquanto advogado, e percebi definitivamente que aquele não era o meu mundo. Portugal é um país de “senhores doutores”. Quando estamos perante um”senhor doutor” parece que todos os outros seres humanos se anulam. Entendi que o meu mundo não era de “senhores doutores”, é um mundo de gente real, com problemas a sério. Tive de fugir a sete pés.

Magoava-me muito, sofria com as situações desesperantes em que algumas pessoas se encontravam e ainda sofria mais por fazer parte de uma engrenagem burocrática e insensível. Não dava para o meu coração ansioso, era tudo muito lento e distante. Então fugi e fugi muito bem.

Fugiu para a poesia…

No fundo desde muito novito que comecei a escrever versos e a anotar quadras. O primeiro livro que li – de letras, sem bonequinhos – fui eu que o comprei. Não é muito normal uma criança poupar uns “dinheiros” e, em vez de os estourar num brinquedo, estourá-los num livro de letras. Desde miúdo que tinha fascínio pelas histórias. Na faculdade comecei a levar os poemas mais a sério.

Foi uma certa coincidência ter encontrado, numa livraria de Coimbra, a Elsa Ligeiro. A livraria era dela, mas ela era também editora. Desconhecia que ela fosse editora e após uma conversa acabei por lhe enviar uns poemas. Ela gostou e queria editá-los.

Fiquei surpreso, chocado. Escrevia desalmadamente, mas a ideia de chegar a um livro era algo de uma dignidade tão grande que eu, no meu mundo discreto e solitário, nunca tinha concebido. Eu vivia atulhado em livros e sonhava ser escritor, mas não me lembro de ter sonhado ter um livro. Era uma coisa absolutamente impossível para mim existir um livro com o meu nome na capa.

É assim que a poesia me abre o mundo dos livros a sério. Quando o livro foi editado, tinha eu 24 anos, estava extasiado. Era a coisa mais exuberante que me acontecia em toda a minha vida.

O que é que pretende alcançar com a poesia?

A minha poesia já pertenceu a diversos domínios. No início, havia uma necessidade de comunicação que tinha a ver com o isolamento – a poesia era uma espécie de radar. Mais tarde, tanta gente se catapultou para dentro da minha vida, que essa noção de solidão ficou tão apagada e a poesia começou a oferecer-me outras coisas. Neste momento, a poesia serve-me de método de provocação e de indução à vida. A poesia obriga-me a viver.

Não serve como terapia, mas para eu fazer um ponto de situação. Eu escrevo um poema e penso que já não sou o mesmo indivíduo que era antes de o escrever: sou um pouco mais.