Já teve um episódio na sua vida em que possa definir um “antes” e um “depois” daquele momento?

Vários. Mais pessoais e menos pessoais. Tive uma relação amorosa de muitos anos que de repente acabou. A nível de escrita, quando li “A metamorfose” abriu-se uma separação entre tudo o que li antes e o que li depois. Aprendi a lidar com o absurdo, a aceitá-lo como se fosse quotidiano. A realidade está longe de ser imediatamente apreensível, há sempre um espaço no quotidiano que nos vai escapar.

Refere-se a 2006 como um ano violento. Está relacionado com a relação que referiu?

Foi um ano duro, de muitas mudanças e quebras. Subitamente a relação pessoal que tinha e o trabalho que fazia, tudo se interrompeu. Saí das Quasi Edições, fiquei sozinho…Foi quase como aprender a andar sozinho. A escrita ficou virada de pernas para o ar.

A sua obra transparece um conflito com Deus. Acredita ou tenta acreditar?

Tento acreditar. Normalmente, quando me interessa acredito; quando não me interessa, não acredito. Sou muito interesseiro a esse nível. Se Deus existir, ele não é perfeito. Olhando para a desgraça que existe, qualquer um de nós saberia ter inventado a perfeição, por isso Deus tem de ser um bocadito azelha.

Surge nu na capa do seu último livro, “pornografia erudita”. O que é queria dizer?

Sinto que escapei a um problema da maior parte das pessoas: o pudor em relação ao seu corpinho, como se tivessem algo incrivelmente diferente e que ninguém possa descobrir. Interessava libertar-me de mais coisas. Pensei: “Vou aparecer nu na capa de um livro”. Isto pareceu-me imediatamente tolo e atraente. É mais um desafio a mim próprio.

Diziam-me que não tinha coragem, que iam aparecer tarados na Internet a masturbarem-se… Quero que eles se masturbem todos e elas sejam felizes a olhar para mim. Existem milhões de ofertas da especialidade, só uma pessoa muito triste se vai masturbar a olhar para a minha fotografia porque nem sequer é grande coisa, não tem nada de erótico, estou apenas a passar uma porta.

A porta de sua casa…

Sim, uma porta que está aberta, que nem sequer existe, está arrancada. As pessoas limitam-se demais, há coisas tão incutidas que nós desaprendemos de dizer e fazer mais. A sociedade é tão castradora que ninguém difere de ninguém para não chocar.

Mais pila menos pila, qual é a diferença? Toda a gente tem uma pila, os homens obviamente. É uma tristeza absoluta, no século XXI, um pila ser assim uma coisa inédita. Só eu é que tenho?

Considera que a sua vida possui densidade suficiente para que o valter se tornasse uma personagem de um livro?

A minha vida não é interessante. Costuma-se dizer “a minha vida dava um filme”, mas se a minha desse uma curta-metragem já era muito. Quando escrevo, tenho de ter fantasia, um desvio à realidade. A escrita para mim é chegar a um espaço que desconheço.

Reescreveria a sua vida?

Mudava uma coisita ou outra. Aos 18 anos, não aceitei namorar com uma grande amiga minha. Se soubesse o que sei hoje tinha namorado com ela. A surpresa da minha vida é chegar a esta idade e aprender que o nosso passado não acaba, há coisas tão importantes que continuam a participar no nosso presente. Adquirem novas tonalidades e pertencem a outras esferas, mas não acabaram, não morreram. O meu pai morreu há sete anos e com o tempo comecei a aprender que o meu pai não é passado. O meu pai não está morto, ele opera efeitos.

E aí é que Deus entra?

Aí Deus entra um bocadinho. Enquanto eu estiver vivo, acontecem coisas que são, ainda, uma existência do meu pai. Com a idade aprendi isso, que a perda não se encerra no passado.

O que é que pode dizer sobre o seu próximo romance?

Posso dizer que é pela primeira vez um livro que não está escrito na primeira pessoa, é uma entidade omnisciente e é, pela primeira vez, uma mulher. O universo feminino está muito presente nos meus livros, mas este romance é mais o elogio puro de uma determinada mulher. Tenta perscrutar mais de perto os segredos das mulheres. Uma boa parte já está escrita.