Nascido a 1 de Março de 1928 em São Diniz, freguesia de Vila Real, Daniel Serrão é um dos mais conceituados patologistas do país. Médico, professor, investigador e conselheiro do papa é conhecido pela sua posição forte na defesa da vida humana. Católico por convicção, rejeita o aborto, a eutanásia e a destruição do embrião.

A Universidade Católica, onde Serrão forma médicos e enfermeiros em Bioética, homenageia-o este sábado, no dia do seu aniversário. No entanto, no entender do médico “nada justifica o endeusamento das pessoas”, que apenas contribui para o “narcisismo bacoco”.

Na véspera do octogésimo aniversário, o JPN esteve à conversa na casa do professor.

Porque é que enveredou pela medicina?

Para mim isto ainda é um mistério. Não havia nenhuma pessoa da minha família que fosse médico. Em determinada altura, ainda no liceu, criei a convicção que queria ser médico. É possível que tenha visto algum médico a actuar, não sei. Mas subjacente a esta ideia de ser médico estava uma posição meia lírica que dizia que nós devemos ajudar os outros. Uns vão para enfermeiros, uns para padres, outros para médicos… São estas profissões que a gente acha que vai ajudar, enquanto que ir para engenharia é para tratar com cimento armado, não me puxava.

Esteve na guerra. De que forma esse período alterou a sua personalidade?

Sim, a fazer acções de paz de 1967 a 1969. África leva-nos a ver a vida de uma forma diferente. É uma outra maneira de estar no mundo. Fui com a minha mulher e um filho. Só uma pessoa indo lá e vivendo. Não tem explicação. É uma diferença em tudo. As relações humanas são mais abertas. Os africanos são pessoas com a maior afectividade. São muito mais verdadeiros, é muito raro mentir. Fiz lá autópsias, essencialmente. E exames de anatomia patológica. Tive contacto com muita gente. Depois ainda preparei uns 30, 35 soldados africanos do regimento da infantaria de Luanda para o Crisma! Fui padrinho de 31 ou de 32 soldados. Muitos deles ainda se lembram de mim.

Eles têm uma visão de Deus muito diferente da nossa. Acreditam no espírito dos antepassados. Por isso, a medicina tem que ser diferente. Eles não acreditam que um indivíduo adoeça por causa de uma bactéria ou um vírus. “Eu estou a adoecer porque fiz alguma coisa má e o meu pai ou o meu avô não está a gostar disto”.

Em 1974 foi afastado de todas as suas funções.

Foi durante um ano. O processo de reintegração nem fui eu que o fiz, foi o Conselho da Revolução. Nunca pedi para ser reintegrado, até nem queria. Eu estava a ganhar muito dinheiro, por que é que ia voltar? Fui demitido em 75 e reintegrado um ano depois, em 76, mas nunca mais mantive a dedicação exclusiva ao ensino e à investigação. Ameaçaram-me de fome uma vez, o Estado não me faz isso segunda vez. No dia 22 de Junho de 75, fiquei de um dia para o outro com a minha mulher e seis filhos e sem um único rendimento. Não era capitalista, nem tinha acções. Quando fui reintegrado devolveram-me o dinheiro, 12 meses certinhos. Mas entretanto pus o laboratório a funcionar, uma actividade privada. E se não fosse o laboratório, abria um consultório, de clínica.

Olhando para trás, nestes 80 anos, que coisas boas é que salienta?

Coisas boas? Todas! Incluindo a demissão. A demissão foi uma coisa formidável. Fez-me ganhar dinheiro que nunca tinha ganho na vida. Consegui educar os meus filhos noutras condições. Não tem comparação, porque o laboratório foi um laboratório de sucesso, porque eu era muito competente e as pessoas achavam que eu era o melhor patologista, portanto tanto fazia fazer o diagnóstico na faculdade como aqui, era igual. O que importava era a pessoa.

Só fechei o laboratório há cinco anos, em 2003. Estava bem, estava a ganhar muito dinheiro na mesma, tinha tudo, não era como as empresas que entram em falência quando têm pouca freguesia. Tinha freguesia que deu para sustentar pelo menos três laboratórios aqui no Porto. As pessoas sabiam que era eu, e a maior parte dos doentes sabia, e eu tinha prestígio na opinião pública. Por vezes não queriam tratar-se aqui e pediam-me as lâminas com o diagnóstico e eu mandava. Nunca tive um caso em que chegasse lá o doente e dissesse “Olhe que o seu patologista não presta, a senhora não tem nada uma doença, tem uma infecçãozita, não tem cá doença nenhuma, não precisa de tratamento.” Nunca tive disso.

E os casos menos bons?

Como sou um optimista, há uma fórmula que eu já tenho dito muitas vezes: nenhuma dificuldade é superior à minha vontade e capacidade de a vencer. Ou olho para a dificuldade como uma coisa “Cá está, estou perdido” ou olho para a dificuldade “Ora cá está uma coisa boa”. Vou ver se resolvo já este problema. Há aí alguma dificuldade grande? Eu vou já resolver. Tenho um cancro? Vou já tirá-lo! Eu nunca adoeci. Nunca estive doente! A próstata tinha um cancro, mas eu não tinha. A minha pessoa está de perfeita saúde. Você está-me a dizer que eu tenho um cancro? Quer tirá-lo? Tire-o lá. Agora não julgue que me está a incomodar a mim. Não está. É a postura que eu tenho tido ao longo da vida.

Estava aqui, recebo uma carta do ministério a dizer que eu estava mobilizado para ir para Angola. Tinha oito dias. Estávamos em meados de Outubro e eu tinha que embarcar dia 2 de Novembro. Havia patologistas mais novos do que eu que deviam ser chamados para fazer o serviço militar. Mas conseguiram aldrabar as coisas e não foram. Eu não protestei nada. “Não era suposto ser eu, mas não interessa. Se os senhores me escolheram a mim, deve ser uma honra. Eu vou.” E fui. E tive de resolver a minha vida, arrumar cinco filhos. A minha mulher disse “Se tu vais eu também vou”. Eu disse, “Muito bem”. Levámos só um filho. Os outros cinco tiveram de se distribuir. Isto resolveu-se num intervalo de três dias ou quatro. Se eu fosse complicativo ou pessimista ou deprimido dizia “Estou perdido”. Nada disso. “Se é preciso ir para Angola, eu vou”. Até gostei, foram dois anos formidáveis de vida. Tinha uma filha de três meses que só me conheceu depois de eu vir.

O que é que o levou a lutar sempre por esses valores éticos? Foi pelo facto de ser católico?

A minha postura é essencialmente ideológica. Desde muito cedo, 17 ou 18 anos, depois de um período que os adolescentes passam da negação de valores superiores, cheguei ao momento em que aprendi que havia alguma coisa para além do mundo. O nome que ponham a essa transcendência depende de muitas situações.

Esses valores são aqueles que eu naturalmente defendo. Acredita porquê? Não sei. Agora é uma coisa tão segura dentro de mim como eu saber que tenho corpo. Tenho a mesma certeza que tenho corpo, como tenho certeza que tenho espírito. Para mim, auto-consciência é igual a espírito.

O facto de ser católico ajudou-o a ultrapassar problemas que lhe surgiram ao longo da vida?

Sempre. O facto de acreditar numa transcendência e de achar que essa transcendência se realiza na tradição hebraico-cristã, não propriamente católico estrito, ajuda, porque me dá este optimismo permanente. Sou católico porque nasci em Portugal, mas poderia ter sido ortodoxo se tivesse nascido noutro lado e o valor era o mesmo, a forma de a usar em público é que era diferente

Já afirmou várias vezes que a Igreja Católica e a ciência já não precisam de entrar em conflito. Nunca esteve perante um caso que o obrigasse a colocar os seus valores católicos em confronto com a sua profissão?

Não. Durante o tempo que fiz clínica, nunca nenhum doente em fase terminal me pediu que o matasse, nem nunca nenhuma mulher grávida me pediu para a ajudar a abortar. Fora o abortamento e a eutanásia, na nossa prática profissional não há nenhuma situação em que a fé impeça de trabalhar.

Mas no caso da clonagem, discorda do que a Igreja diz.

Agora aí, não podemos falar de Igreja. Há organismos dentro da Igreja que se têm pronunciado sobre isso. Eu tenho de facto uma opinião diferente. Nunca se provou que possa ser possível fazer um ser humano, não pode ser chamado de embrião. É uma estrutura laboratorial que não tem um pai nem uma mãe. Para mim, usarem isto para investigação é o mesmo que utilizar células de tumor, esse é verdadeiramente um amontoado de células vivas; agora o embrião não. O embrião merece-me o respeito absoluto, porque naquele embrião estão envolvidos duas pessoas.

Alguns elementos da igreja têm medo e acham que isto é um perigo. A clonagem reprodutiva está proibida no nosso país por um protocolo que aliás foi feito por mim, numa comissão que eu próprio presido, a Protecção do Embrião e do Feto. O protocolo diz precisamente no artigo primeiro que é proibido usar a transferência nuclear para fazer um ser humano igual a outro já existente, vivo ou morto.