Subir, escorregar, prosseguir. O Porto Feliz funcionava como uma longa escada: pretendia-se que os utentes percorressem uma série de degraus, desde a desintoxicação até à procura de emprego. Quando algo falhava, os utentes sabiam que podiam contar com os técnicos, que os auxiliavam em todos os momentos.

Marília Beça, educadora social, foi Técnica Intermediária de Reabilitação (TIR) do início ao fim do Porto Feliz e percorreu todos os centros de dia e casas de abrigo do programa. Segundo Marília Beça, existiam três equipas diferentes no acompanhamento aos utentes: a equipa clínica, a equipa de vinculação e a equipa intermediária de reabilitação. A primeira, constituída por “psicólogos, psiquiatras e enfermeiros”, era “responsável pela desintoxicação” no Centro Hospitalar Conde Ferreira, conta.

Já na equipa de vinculação trabalhavam “psicólogos e assistentes sociais”, os denominados Técnicos de Vinculação (TV), que faziam a “abordagem dos utentes na rua” e os acompanhavam “ao longo de todo o processo”, explica Marília Beça. Da equipa de vinculação faziam parte “dois agentes da polícia”, que, numa segunda fase, “começaram a dar formação a outros polícias”, para intervirem de uma forma “pedagógica e não-obrigatória”.

Eram poucos os utentes que ficavam com a família

Segundo A., também ex-TIR, que pediu o anonimato, os técnicos de vinculação formavam pequenas equipas de “duas ou três” pessoas que procuravam arrumadores em determinadas áreas, enquanto os “polícias pedagógicos” constituíam uma equipa “à parte”.

A. revela que “cada utente tinha direito a uma técnica de vinculação”, que tratava da “parte burocrática”, como marcar consultas, gerir o dinheiro dos utentes ou fazer a “aproximação à família”. Havia utentes que, durante o programa “ficavam na família”, mas “eram muito poucos”, conta.

Intervenção da PSP podia ir “além do convite”

O JPN sabe que os arrumadores que não aderiam ao programa eram levados para a esquadra por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), como forma de “incentivo” a aderir ao tratamento.

O presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), João Goulão, disse ao JPN ter conhecimento de casos em que a intervenção da PSP ia “para além do convite” e exemplifica: “Se não desapareces daqui, se não te tratas ou se não te deixas envolver nesta intervenção, poderás ter dissabores com a própria polícia”.

Por último, a equipa intermediária de reabilitação, a que as técnicas contactadas pelo JPN pertenceram, ocupava-se do “acompanhamento 24 horas por dia do doente”, num trabalho realizado por turnos, explica Marília Beça. De manhã, os TIR acompanhavam os utentes no Centro Hospitalar Conde Ferreira. À tarde, desenvolviam actividades ocupacionais que, de acordo com A., passavam pelo desporto, carpintaria, expressão corporal, informática, fotografia e até a elaboração de um jornal trimestral.

Segundo Marília Beça, nos turnos das 18h às 9h, a função dos TIR era “continuar a apoiar alguém que precisasse” e gerir eventuais conflitos, bem como “a própria rotina da casa” onde os utentes dormiam. A. acrescenta que os TIR também eram responsáveis pela medicação e pela entrega de cinco euros por dia a cada utente – na parte final do projecto “passou a três euros” por utente “devido ao corte de verbas”.

Os TIR tratavam ainda da documentação, que “a maior parte” dos utentes não tinha, acompanhavam-nos nas consultas médicas, no tribunal e nos julgamentos e ajudavam-nos a procurar emprego, preparar currículos, entrevistas e candidaturas, recorda a ex-TIR.

Álcool e haxixe substituem antigas dependências

Para a ex-TIR é benéfico que os utentes deste tipo de programas estejam em casas de abrigo e não em pensões, pois “um técnico numa casa impõe respeito”, ajuda-os a “reaprender a viver em comunidade” e está pronto para os ouvir e aconselhar, tendo em conta que “o período da noite é o período em que eles mais consomem”.

A. revela que vários utentes, depois de terminarem o processo de desintoxicação, passaram a consumir álcool ou haxixe, numa espécie de “substituição” das drogas que antes injectavam. Nas casas de abrigo tinham regras a cumprir. Se não as seguissem podiam ser suspensos por 15 dias ou expulsos definitivamente. Segundo a técnica “não houve muitas” expulsões, mas “todos eles foram suspensos pelo menos uma vez”.

“Às vezes tínhamos que chamar os polícias pedagógicos”

O apartamento de reinserção Doze Casas foi um dos locais onde A. trabalhou durante o Porto Feliz. Aí, durante a noite havia apenas um técnico para tomar conta dos utentes e da casa. Já na Casa de Vila Nova, que passou para as mãos do Porto Feliz em 2003, A. afirma que havia segurança nocturna. Segundo a ex-TIR, os utentes da casa de abrigo, que passavam por um tratamento de substituição à base de metadona, “eram muito problemáticos”. “Às vezes tínhamos que chamar os polícias pedagógicos”, conta.

A. acredita que o Porto Feliz “foi bem planeado” e “chegou a ser inovador”. No entanto, considera que “deveria haver mais ajuda em termos de Instituto de Emprego”. Para a ex-TIR era importante que tivessem havido “mais protocolos”, pois as dificuldades em encontrar emprego “desmotivavam” os utentes do Porto Feliz.

2% dos utentes tratados com metadona

Segundo João Marques-Teixeira, “o processo de desintoxicação demorava no máximo dez dias”. O tratamento dos toxicodependentes era feito recorrendo a antagonistas, substâncias normalmente utilizadas para bloquear a acção das drogas.

A metadona, uma substância de cariz agonista que neutraliza o sentimento de privação das drogas, e a que os CAT habitualmente recorrem, foi utilizada apenas “na fase final do programa”, quando o Porto Feliz passou a ter “disponível para gestão uma nova unidade distinta das anteriores, que acompanhava doentes de baixo limiar de exigência”. “No fim deste processo verificamos que apenas 2% dos nossos utentes necessitaram deste tipo de tratamento”, afirma Marques-Teixeira, por e-mail.