O Porto é uma cidade recheada de instituições de solidariedade social. Entre elas, várias prestam apoio a toxicodependentes já há alguns anos. Das associações contactadas pelo JPN apenas o Centro CAIS – Porto (Círculo de Apoio à Integração dos Sem-abrigo) afirmou ter sido “parceiro social” do programa Porto Feliz.

Sílvia Azevedo, coordenadora do Centro CAIS – Porto, explica, por e-mail, que “a parceria consistia em receber utentes do projecto na CAIS, para trabalhar as competências sociais, profissionais e pessoais, com vista à preparação e orientação para a inserção social e profissional dos mesmos”.

A coordenadora do Centro CAIS considera que o Porto Feliz teve pontos positivos e negativos, “como todos os projectos”. A alteração de “meios e estratégias com vista a melhorar as respostas” ao longo do tempo é importante, algo que pensa ter acontecido no Porto Feliz. No entanto, afirma que, se o programa voltasse a existir, há “estratégias de intervenção que deveriam ser modificadas e ajustadas à realidade social do Porto e ao tipo de pessoas que o projecto pretende dar resposta”.

“O problema da toxicodependência nunca vai terminar, mas podem ser criadas respostas adequadas para aqueles que as procuram”, diz. “Não vamos acabar com os arrumadores na cidade do Porto com atitudes de repressão, mas sim com políticas sociais ajustadas às características económicas e sociais de quem está na rua”, conclui. “As necessidades de ontem não são as de amanhã e nem tudo é controlável”.

“Surdez” entre a câmara e a Norte Vida

Segundo o presidente da associação Norte Vida, Agostinho Rodrigues, a instituição “trabalha com o fenómeno drogas há cerca de 15 anos”. Actualmente, a acção da Norte Vida abrange as áreas da prevenção, redução de riscos e minimização de danos, tratamento, encaminhamento “para outras estruturas” e apoio psicossocial, numa “estratégia de proximidade”.

Agostinho Rodrigues diz nunca ter sido contactado no sentido de estabelecer qualquer colaboração com o programa Porto Feliz. “Não houve conflitos, houve surdez”, realça. O presidente da Norte Vida geriu a Casa de Vila Nova, um centro de acolhimento temporário com um programa de substituição de baixo limiar de exigência – administração de metadona – antes de esta passar para as mãos do Porto Feliz. Quando o projecto terminou, a Norte Vida voltou a tornar-se responsável pela gestão da Casa de Vila Nova através de um concurso público.

Apesar de reconhecer que não existe um consenso total, do ponto de vista científico, em relação à problemática da toxicodependência, Agostinho Rodrigues considera que o programa Porto Feliz foi desenvolvido “ao arrepio da comunidade científica”. O presidente da Norte Vida afirma que hoje há “uma maior articulação entre todos os serviços da cidade do Porto”. E diz que o trabalho de parceria “aumenta a eficácia” das respostas dirigidas aos toxicodependentes.

Tentativa de articulação “não resultou”

Já o padre José Maia, presidente da Fundação Filos, admitiu ao JPN que “houve uma tentativa” de articulação que “não resultou”. José Maia, que lida com a problemática da toxicodependência há dez anos, chegou a reunir-se com a coordenação do programa Porto Feliz, mas a cooperação nunca se concretizou formalmente, devido à diferença de “filosofias” defendidas.

Para o presidente da Filos, o objectivo da câmara do Porto era “escorraçar os arrumadores da cidade”. Diz que a autarquia portuense pretendia a “higienização da cidade”, em vez de ter uma visão “humanitária” com a qual se identifica a Fundação Filos. No entanto, “ao nível dos técnicos havia partilha de informações”, conta.

António Caspurro, director executivo do projecto ARRIMO (Apoiar, Reduzir Riscos e Integrar, Motivando e Orientando), um programa de apoio a toxicodependentes da Fundação Filos, explica que o Porto Feliz tinha recursos de que a Filos não dispunha. Desta forma, sem a existência de qualquer protocolo, os técnicos da Fundação Filos encaminhavam alguns utentes para o Porto Feliz.

O director executivo do projecto ARRIMO considera que o Porto Feliz, “ao tratar-se de um programa livre de drogas, cuja intervenção se baseava exclusivamente na procura da abstinência, excluía automaticamente algumas, ou muitas, para não dizer a maioria dos utilizadores de drogas que deambulam nas ruas”, pelo que, aqueles que não aderiram ao programa “só teriam direito à retaliação policial“. Por outro lado, José Maia lembra que “há muito toxicodependente nesta cidade que não tem nada a ver com arrumadores”. “A toxicodependência é um conceito muito mais amplo”, realça.

Houve um “boicote no plano técnico-científico”, diz Marques-Teixeira

Para um dos coordenadores científicos do Porto Feliz, João Marques-Teixeira, houve várias razões para algumas instituições não terem colaborado: “primeiro porque estavam politicamente contra o projecto; segundo porque queriam manter uma posição de liderança do processo e isso não era colaboração, mas imposição; terceiro, só abdicaram desta posição quando viram que o projecto tinha sucesso”.

Segundo Marques-Teixeira, que falou ao JPN por e-mail, houve dois ou três Centros de Atendimentos a Toxicodependentes que se envolveram no Porto Feliz. O responsável destaca que havia um protocolo com a Administração Regional de Saúde (ARS) do Porto, o que significava “que todas as instituições ligadas à saúde e sob a égide da ARS estariam também protocoladas. Ninguém ficava de fora. Só os que quiseram ficar”.

“O que aconteceu foi uma grande luta desigual no plano político e, também, boicote no plano técnico-científico. Isto para não falar na comunicação social que se aliou completamente a estes discursos politicamente enviesados”, acrescenta Marques-Teixeira.

Ex-utentes do Porto Feliz procuram auxílio

Hoje, muitos ex-utentes do Porto Feliz são apoiados por estas e outras instituições. A Assistência Médica Internacional (AMI), que segundo o delegado da região Norte, João Sousa, procura combater “a pobreza e os sem-abrigo em particular”, é um dos locais onde ex-utentes do Porto Feliz “vieram procurar ajuda básica“, nomeadamente “alimentação, um ou outro banho e roupa”.

A opinião do delegado da região Norte da AMI em relação ao Porto Feliz “é favorável”. Aplaude o acompanhamento psicológico “constante”, mas lembra que “nem toda a gente tem força suficiente para ir para um programa”. “O importante é nunca desistir do ser humano que ele é, com ou sem drogas”.

Técnicos do Porto Feliz continuam sem trabalho

A Câmara do Porto deixou nas mãos do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) os utentes do Porto Feliz, incluindo “os que, sem nunca terem sido financiados pelo IDT, se encontravam em acompanhamento no Centro Hospitalar Conde de Ferreira”, explica o presidente do instituto, João Goulão. Para dar continuidade ao acompanhamento dos utentes do Porto Feliz, o instituto criou “uma equipa de emergência com técnicos do IDT e alguns recrutados especificamente para o efeito”.

Mas nem só os utentes do Porto Feliz perderam o programa. Ao que o JPN apurou, parte da equipa técnica do Porto Feliz foi contratada a recibos verdes. No momento em que o programa terminou, de um dia para o outro ficaram sem emprego e sem direito a subsídio de desemprego ou indemnização. Alguns dos técnicos continuam sem trabalho até hoje.