A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou, num relatório (em PDF) publicado na semana passada, que “a injustiça social está a matar em larga escala” a nível global e apelou à criação de uma “nova agenda mundial” para a equidade na saúde.
“A justiça social é um assunto de vida e de morte. Afecta a forma como as pessoas vivem, as consequentes hipóteses de desenvolverem doenças e o risco de morte prematura”, refere a Comissão das Determinantes Sociais da Saúde, que realizou este trabalho ao longo dos últimos três anos. “Olhamos admirados à medida que a esperança média de vida e a saúde continuam a aumentar em algumas partes do mundo e olhamos alarmados à medida que esses indicadores não melhoram noutros lados”.
Os problemas portugueses
Para o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Portugal tem dois problemas principais, no âmbito do relatório da OMS: uma pobreza crescente e uma ineficaz gestão de recursos destinados à saúde. “A pobreza crescente indica que, a médio prazo, os nossos índices de saúde vão baixar”, diz Rui Nunes. Por outro lado, uma melhor gestão dos recursos primários permitiria que fossem “libertadas” verbas para financiar campanhas de prevenção, numa aposta de longo prazo na saúde.
A OMS destaca que na Suécia uma em cada 17.400 mulheres morre durante a gravidez ou durante o parto; no Afeganistão, essa probabilidade é de uma em cada oito. É também possível fazer uma escala da esperança média de vida se se compararem vários países do mundo. No Japão uma criança pode aspirar a viver até aos 80 anos, no Brasil a expectativa já baixa para 72 anos e na Índia a média é 63. E em vários países africanos a esperança média de vida continua abaixo dos 50 anos. “Não tem de ser assim e não está certo que assim seja”, refere o documento.
Três medidas
Desta forma, a comissão, que contou com nomes como os do prémio Nobel da Economia Amartya Sen e do antigo primeiro-ministro de Moçambique Pascoal Mocumbi, apresentou três medidas para que seja posto um fim a esta situação de disparidade no acesso aos cuidados de saúde a nível mundial: aumento das condições de vida do quotidiano, uma melhor distribuição de poder, dinheiro e recursos e, por último, a necessidade de uma maior compreensão do problema para uma mais avançada avaliação do mesmo.
Para o presidente da Associação Portuguesa de Bioética (APB), este é um “relatório importantíssimo, porque chama a atenção para algo que até aqui tem sido apenas conhecido da classe científica” e é “particularmente importante para um país como Portugal”. Segundo Rui Nunes, existe uma mentalidade de que a saúde depende exclusivamente do sistema de saúde. “Isto é um erro”, responde o também director do serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
“O sistema de saúde é apenas uma parte da solução”, considera Nunes. Existe um conjunto de condições sociais, económicas e culturais que são determinantes para a saúde da população, individualmente e como um todo, explica. É possível “reduzir as desigualdades na saúde através da redução das desigualdades sociais”.
Países nórdicos são o exemplo a seguir
Os autores do relatório destacam o caso dos países nórdicos no que toca ao “compromisso com as políticas universalistas baseadas na igualdade de direitos aos benefícios e serviços, emprego pleno, equidade de género e baixos níveis de exclusão social”, favorecendo uma maior distribuição de rendimentos.
Na Suécia, uma em cada 17.400 mulheres morre durante a gravidez ou durante o parto, enquanto no Afeganistão essa probabilidade é de uma em cada oito.
Assim, a OMS refere que o nível económico de um país não é o único condicionante para a qualidade de serviços médicos. “Alguns países de baixo nível salarial como Cuba, Costa Rica, China, Sri Lanka atingiram um bom nível de saúde completamente fora do esperado de acordo com a média orçamental nacional”, nota.
O presidente da Comissão das Determinantes Sociais da Saúde, Michael Marmot, afirmou que “fundamental para as recomendações da comissão é a criação das condições para que possa ser dado poder às pessoas, de modo a que tenham a liberdade para viverem vidas que floresçam”. “Se as nossas recomendações forem seguidas, a saúde e a vida de milhares de milhões de pessoas serão dramaticamente melhoradas”.
De acordo com Rui Nunes, este relatório vai no sentido de criar uma “corresponsabilização” da sociedade no que toca à saúde. “A sociedade do futuro é uma onde os cidadãos ajudam directamente a resolver os seus problemas”, afirma, em declarações ao JPN, acrescentando que há uma forte necessidade de se desenvolverem estratégias preventivas que complementem os planos curativos já existentes. Desta forma, a saúde deve ser encarada como um investimento a longo prazo que reduza os danos causados a cada pessoa preventivamente, de modo a que esta não chegue a adoecer.
Cerca de mil milhões de pessoas vivem em áreas urbanas pobres
O relatório “Closing the Gap in a Generation: Health Equity through Action on the Social Determinants of Health” (“Encerrando o fosso numa geração: Equidade na saúde através de acção nos factores sociais determinantes da saúde”) lembra que em 2007, pela primeira vez, a maioria da população mundial passou a viver em cidades. Porém, mil milhões de pessoas vivem em zonas urbanas muito pobres ou favelas.
O documento fornece uma perspectiva extremamente vasta sobre as condições de acesso à saúde por todo o mundo e procura criar uma alavanca para a melhoria desses serviços. “Os sistemas de saúde não gravitam naturalmente para a equidade. É necessária uma liderança sem precedentes que empurre todos os actores, incluindo os que estão para lá do sector da saúde, a examinarem o seu impacto na saúde”, explica a directora-geral da OMS, Margaret Chan.
Reforço da prevenção é fundamental
Segundo Michael Marmot, há um excesso de confiança da população nas intervenções médicas como forma de aumentar a esperança média de vida. Ou seja, procura-se apostar na resolução de problemas e não na prevenção. “Doenças existentes na água não são causadas por falta de antibióticos, mas por água suja e por todas as forças políticas, sociais e económicas que não conseguem tornar disponível água limpa para todos”, indica a comissão. “As doenças cardíacas não são causadas por falta de cuidados coronários, mas pelas vidas que as pessoas levam, que são modeladas pelos ambientes em que vivem”.
De acordo com Rui Nunes, a prevenção dá resultados que só são visíveis à distância de uma geração, o que significa que o poder político, que procura efeitos imediatos, já não vai ser o mesmo. “O problema do poder político é que governa segundo o prazo da legislatura” em detrimento do longo prazo, diz.
As “desliberdades”
Amartya Sen, num comentário que acompanha o relatório, refere que o “objecto primário do desenvolvimento, para qualquer país e para todo o mundo, é a eliminação das ‘desliberdades’ que reduzem e empobrecem as vidas das pessoas”. “Como centro da privação humana está o falhanço das capacidades para viver vidas longas e saudáveis. Isto é muito mais do que um problema médico”. O Nobel da Economia sublinha que “uma maior compreensão é, também, um apelo à acção”.