Tinha quatro anos quando foi ao fanado (nome dado ao ritual da mutilação genital na Guiné Bissau). Mas ainda se lembra do “susto que apanhou”. O terramoto interior não acalmou no momento em que acabou o “corte”. “Fiquei muito revoltada. Aquele pânico não me saía da cabeça”, conta ao JPN Cadi, uma guineense a viver em Lisboa.

As consequências psicológicas de quem é submetido à Mutilação Genital Feminina (MGF) são “graves e traumáticas”, diz Yasmin Gonçalves, psicóloga e especialista no estudo desta prática. “Os relatos das crianças e mulheres sujeitas à MGF revelam a existência de sentimentos de ansiedade, terror, humilhação e traição”. Pode haver também “stress pós-traumático e depressão”, acrescenta.

Submetidas muito novas à MGF (normalmente entre os 4 e os 12 anos, mas às vezes mais cedo), nem todas as mulheres se recordam do ritual. “Depende das características de personalidade de cada uma”, pois “quando existe um trauma, o modo como vão reagir as pessoas é diferente”. Há aquelas que “conseguem verbalizar alguns aspectos, como quem a levou, o que sentiu; outras há que não conseguem falar sobre o assunto ou nem se recordam do que aconteceu”, aponta Yasmin Gonçalves.

Cadi recorda-se. E lembra-se também de perguntar à mãe “o que era aquilo”. A MGF é, para várias comunidades africanas e algumas asiáticas, um ritual simbólico de passagem de menina a mulher. Aquelas que recusam ir ao “fanado não podem casar, não podem cozinhar para os outros; são completamente excluídas da sociedade”, explica Cadi.

Trata-se de um ritual enraizado na cultura de certas tribos e “fundamentado” pela fé islâmica. Mas é, na verdade, “uma questão de uses e costumes, de tradição. O islamismo não tem nada a ver com isso; o Alcorão não diz nada”, afirma Ibraima Baldé, presidente da associação guineense Uallado Folai.

“Não conseguia engravidar”

A mutilação genital vem “do tempo dos faraós, há 5 mil anos. Aí nem havia Islão”, esclarece Ibraima Baldé. Esta prática “serve as necessidades dos homens”: “é uma forma de submeter as mulheres aos seus maridos, de as impedir de ter relações sexuais com outros homens”. E as mulheres sentem-se menos mulheres. “Ficam desmoralizadas, tristes, acham que deixam de ser mulheres para se tornar num objecto”, acrescenta.

A MGF pode trazer inúmeros problemas físicos à mulher, como “menstruações muito dolorosas, dores durante o coito ou infecções urinárias”, indica Yasmin Gonçalves. Apesar de “haver queixas” sobre estes aspectos, os técnicos de saúde portugueses, “que não estão sensibilizados para o tema” , “podem não identificar estes problemas como consequência de uma mutilação e a própria mulher não se sente à vontade para falar sobre isso”, diz Yasmin Gonçalves. “As reacções dos profissionais podem constituir uma barreira” à abertura das mulheres, alerta.

Dificuldade em engravidar é outra das consequências. “Tive de vir a Portugal fazer um tratamento porque não conseguia engravidar”, testemunha Cadi. E são “muitas” as meninas que morrem após o “corte”, sublinha Ibraima Balde. “Como se usa uma faca para 30 pessoas ou mais, é muito fácil uma menina apanhar uma infecção que leva à morte”.

Nestes casos, não se culpa a excisadora, mas diz-se que “alguém ‘comer a menina’, que houve um feitiço”. “Parece que estamos no século dezasseis”, desabafa Ibraima.

Educar para erradicar

Educar é a melhor via para apagar esta tradição. “É preciso formar, alfabetizar as pessoas e falar com elas sobre todo o mal que há nesta prática”, salienta Ibraima Baldé. “As pessoas mais novas já estão contra isto”, garante Cadi.

Uma das metas da Uallado Folai é ir à Guiné-Bissau e sensibilizar a comunidade para abandonar esta prática. “Queremos conversar com as fanatecas (as excisadoras), com os chefes das aldeias, com os governos, com os padres, com as pessoas”. A Uallado Folai já está a erguer uma associação em Bafatá “para este fim”, revela o presidente. É necessário, ao mesmo tempo, criar condições económicas para a comunidade, pois a MGF “também é um negócio”.

Para manter o ritual e eliminar o “corte”, várias ONG`s já propuseram um fanado alternativo. “Isso sou a favor”, diz Ibraima Baldé. “A festa é uma coisa bonita. É um ensinamento de como as pessoas se devem relacionar na comunidade”. Ibraima acredita que “nas gerações vindouras, a MGF vai diminuir”. “As minhas filhas pedem-me para tentar acabar com isso”. E ele promete continuar a lutar.