“Chamo-me António Silva, não sou actor de cinema. Sou o engraxador da Praça da República!” Enquanto o Sol bate na praça, enquanto corre a azáfama de mais um dia de gente atarefada de regresso a casa; de velhos, bancos e jogos de cartas; de sem-abrigo à procura de um cigarro e taxistas estacionados na berma; está António Silva a engraxar sapatos e a cantar: “Ao povo que passa mete muita graça este meu apregoar.” Ao pé dele, apoiado na bengala de madeira castanha escura, o companheiro de tardes e de conversas nos intervalos entre um e outro cliente. “Vai uma engraxadela?”

A caixa que guarda os materiais revela os 66 anos de uso. O engraxador tem 80 anos, as mãos pintam-se com o preto da graxa desde os 14. São seis da tarde e é tempo de balanço: “Ganhei o gosto a esta profissão, que dizer, foi o que a vida me permitiu. Não gosto muito, mas tenho de gostar. Até porque a minha reforma é bastante baixa e isto ajuda-me a viver.”

António Silva faz parte da história da praça, fez-se nela moço e velho e é com ela e nela que se recorda de si. A vida exigiu-lhe uma profissão pela qual nunca foi apaixonado, mas é com orgulho que diz ter sido o “primeiro engraxador da sua falecida mãe”.

Martelou com as mãos firmes e experientes, ser engraxador exige destreza manual. Mas com o avançar dos anos dissipou-se a destreza das principais artérias da cidade. E o Porto perdeu graxa e algum brilho. Desapareceu o engraxador da Cordoaria, do Marquês, da Boavista: “Aqui neste diâmetro, desde a praça da liberdade até à igreja da Lapa estávamos 14. Estão todos à minha espera, morreram todos. Eu sou o número um, o chefe deles.”

“Menina, sou limpador de calçado!”

Mas ainda há engraxadores nos Aliados. Em frente ao antigo Café Imperial, agora convertido em McDonalds, está José Oliveira. Com 62 anos, diz-se, em tom de graça, um “limpador de calçado” desde os 14. A profissão é uma herança do pai e não tem vergonha do que faz. Afinal, “um engraxador vale tanto como outro qualquer”, atira. Trabalhou “no Café História, passei para o Café Rialto na praça D.João I, depois estive numa engraxadoria em Santa Catarina e finalmente vim para aqui, para a rua.”

Ao pé dele, dispostos a alguns metros de distância, já que, explica José Oliveira, “não convém estarem todos juntos, dá alguns problemas, há pegas pelos clientes, cada um conquista os seus”, estão Armando da Costa, 70 anos, e José Ferreira, com 68 anos. Já há muito que “conquistaram” os Aliados e, apesar das dificuldades, querem manter-se pela Avenida “até não poder”. “Enquanto puder continuo nesta arte, quando não puder arrumo…”, explica José Ferreira.

Longe vão os dias em que lhes pagavam 5 tostões por engraxar uns sapatos. Agora, por um ou dois euros, um homem de gravata azul-escura pousa o pé no apoio da caixa e lê o jornal enquanto os “não actores”, mas artistas, lhe “puxam o lustre” ao sapato.

“Hoje 5 tostões não dão para nada, nem para um rebuçado. Engraxei milhares de sapatos a cinco tostões, depois foi subindo para 8, 10, 12, 15 e por aí fora. Ganho sempre para mandar tocar um cego,” revela o sobrevivente da Praça da República. Armando da Costa, mais optimista, acrescenta que “o dinheiro vai dando, aqui ainda não se sentiu a crise, ainda há muita gente a querer engraxar os sapatos.”

Ao som do vai e vem da escova “fazem contas à vida”, a última geração de engraxadores do Porto viaja entre sonhos e pensamentos, observam e absorvem a evolução do mundo sentados nas suas caixas.