Professora no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto (UP) e presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, Manuela Fleming passou por Paris, onde teve oportunidade de contactar com psicanalistas importantes que lhe despertaram o interesse pela disciplina. A psicanalista e investigadora, que já conta com dezenas de artigos publicados em revistas internacionais da especialidade, explica ao JPN como acha que a investigação na sua área “não é uma prioridade” em Portugal.

Como é que consegue dedicar-se, dia após dia, a analisar e a tratar as patologias mentais das pessoas?
É preciso gostar-se muito, não é uma profissão fácil. Fazer clínica é uma paixão e um desafio, sentir que cada pessoa é diferente. Não há nenhum manual de instruções para as consultas, é o gosto pela relação humana. No plano pessoal, às vezes é pesado e doloroso porque tem que se estar em contacto com a doença do outro. Tenho que ter uma grande capacidade de escuta, uma grande curiosidade sobre como é que a outra pessoa se sente. E depois tenho a minha formação, a técnica psicanalítica.

O legado de Freud ainda se encontra actual?
Claro que sim. O que não quer dizer que a Psicanálise não tenha evoluído. Hoje vemos mais doentes do que antigamente, mais patologias. Há muitas escolas que se criaram e muitos psicanalistas depois de Freud. Começamos a ver crianças e adolescentes, doentes e patologias mais graves. Freud nunca tratou crianças. Foi a filha dele, Anna Freud, que começou a fazer psicanálise aos mais jovens. E o facto de estes poderem ser tratados sem recurso a fármacos [como é regra da Psicanálise] é importante.

Porque é que acha que hoje em dia se vêem mais patologias do que no tempo de Freud: chegam mais doentes até ao psicanalistas ou a evolução tende a que se criem novas patologias?
Não tenho uma ideia definitiva sobre isso. Aceito que haja novas patologias: a sociedade muda, há novos problemas, as pessoas têm de lidar com situações muito diferentes. Referia-me mais ao que Freud pensava, isto é, que a psicanálise não se aplicava a doentes que não fossem neuróticos. E, portanto, ele próprio escolhia os seus doentes e as patologias que tratava porque considerava que a psicanálise não era um método terapêutico que se aplicasse a todas as patologias. Hoje não se pensa assim. A técnica e o conhecimento evoluíram e hoje aceitamos doentes que, se calhar, Freud teria rejeitado.

Sei que a sua área de investigação se centra, em particular, nos mais jovens. Qual a razão desta sua opção?
Interessei-me, particularmente, pela área da toxicodependência nos jovens. Hoje um adolescente pode ser tratado com grande eficácia e em abordagens relativamente curtas, porque estão em crescimento. É uma área onde tenho uma experiência grande de trabalho com adolescentes, que me dá muito gozo.

Quem gostaria de ver deitado no divã do seu consultório?
Não sei. Talvez os adolescentes que matam de uma forma terrível os colegas. Essas situações são de uma violência tão terrível que eu pergunto: o que pensará um adolescente assim, será que ninguém viu até que ponto aquilo chegou? São situações que me deixam curiosa e, principalmente, preocupada.

Perfil

Maria Manuela Sousa Pereira Veloso Fleming nasceu em 1948, em Torres Novas, em Santarém. Formada, inicialmente, em Engenharia Química, Manuela Fleming interessou-se pela Psicologia quando estudava e trabalhava em Paris. Regressada a Portugal após o 25 de Abril, prossegue a sua formação na área. Em 1990 inicia a actividade enquanto docente no ICBAS, onde ainda hoje lecciona. Com sete livros publicados e o desejo de escrever outro, Manuela Fleming é também presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise.

Enquanto professora universitária, considera que existe uma ligação directa entre o trabalho que desenvolve na clínica e o ensino?
Para mim, o ensino quanto mais ligado estiver a uma actividade clínica melhor. Eu gosto de juntar a actividade de docente com a actividade clínica, porque a clínica é uma aplicação das teorias. Posso ter uma teoria sobre a depressão, mas também trato deprimidos, ponho em prática as teorias e verifico. É como se eu sentisse que a prática clínica não só me complementa mas me torna, como docente, mais convicta. Para além de que me permite dar exemplos clínicos.

Existe uma preocupação na transmissão do conhecimento e na aposta em novos talentos da investigação?
É óbvio que nós distinguimos as pessoas e, também na minha área, entendermos que há pessoas particularmente dotadas para o exercício da profissão. Mas as ciências psicológicas são diferentes. Não me parece que essa cultura da procura dos novos talentos se observe e que já tenha historial no nosso país. Parece que se aplica mais aos grandes laboratórios e às ciências exactas e biológicas. Sinto que não é prioritária a investigação na minha área.

Pode ser um problema de divulgação da ciência?
Também, porque mesmo em Portugal há poucas revistas que publiquem nestas áreas. Às vezes são precisos anos para que um artigo seja aceite por uma revista internacional. E, sem divulgação, não é fácil fazer passar esse conhecimento para o público em geral. Muitas vezes é considerada uma coisa de segunda linha. Tenho que reconhecer que se faz pouca investigação psicanalítica.

Qual o caminho que a UP deve seguir?
A Universidade tem de se abrir, fomentar o diálogo, pôr em contacto pessoas de áreas diferentes, criar estruturas e infra-estruturas para a investigação e para a docência. Deve permitir ao máximo que a comunidade científica portuguesa faça intercâmbios com as universidades estrangeiras, porque nós precisamos de ser desafiados pelos países onde o conhecimento e a investigação estão mais desenvolvidos.