Aos 49 anos, o antropólogo João Pedro Galhano Alves orgulha-se de já ter vivido em aldeias da Idade do Ferro, entre tigres e leões, de arco e flecha na mão. Nascido no Porto, o investigador começou por estudar agronomia, mas a sede de viajar levou-o até à antropologia. Diz que procura sociedades felizes e que as encontrou no meio das tribos gurjar e gourmantché. Já enfrentou um tigre na Índia e viu a morte passar de rompante.
Em Junho de 2010, o Museu Nacional de Ciências Naturais de Espanha inaugurou “Vivir en Biodiversidad Total con Leones, Tigres o Lobos“, exibição que compila grande parte das suas investigações. Para lá levou mais de 400 objectos, comprados ou trocados nas aldeias por onde passou, alguns dos quais únicos no mundo. É a exposição comemorativa do estado espanhol do Ano Internacional da Biodiversidade, algo que o enche de orgulho. Paris, Niamei e Lisboa podem ser as próximas cidades a receber o certame.
Pós-doutorando do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (Universidade Nova de Lisboa) e do Institut de Recherches Sociologiques et Anthropologiques (Université de Montpellier III), João Pedro é bolseiro há mais 18 anos. Encontrou locais com ecossistemas intactos e provou que ainda é possível respeitar o curso natural da Natureza, mantendo um sistema agrário em locais com grandes predadores. Defende, por isso, um conceito único: a biodiversidade total.
Hoje confessa que gostava de estabelecer-se, ensinar aos mais jovens aquilo que sabe, mas não deixa de querer voltar ao Níger, “o país mais duro do mundo”. Ainda este ano vai dedicar-se ao estudo do urso dos Pirinéus e planeia preparar uma carreira de docente em França. Não é ele que volta as costas ao país onde nasceu; Portugal, diz, é que o mandou para o “exílio”. Acima de tudo, é um homem que gosta de borboletas e que só quer oferecer um palácio à mulher.
Entrevista:
– O antropólogo que procura sociedades felizes
– Do Islão à tribo gurjar
– “Estive a morrer no Níger”
Estudou agronomia antes de se tornar antropólogo. Foi quando visitou a Índia que este interesse realmente se impôs, mas as viagens sempre tiveram uma importância muito grande na sua vida, certo?
Costumo dizer que uma grande viagem vale cem livros. Sempre tive vontade de viajar desde adolescente e, para o fazer, nunca pedi dinheiro à família. Trabalhava nas férias e ia juntando. Fui à boleia para França aos 18 anos e aos 20. A partir daí nunca mais parei. Cheguei à Grécia, cheguei à Suécia, ao Círculo Polar Ártico, a Nova Iorque.
Aos 23 anos, quando já estudava Agronomia em Vila Real, consegui ir à Índia. Estive lá três meses e meio e passei os dois últimos sem sapatos porque apodreceram e eu não tinha dinheiro para comprar novos. Mesmo assim, entrei no Nepal e cheguei ao Tibete a pé. Passámos a fronteira da China a pé.
Como foi ver a Índia?
Foi uma viagem ao passado. Vi aquilo que só tinha lido em livros. Pode chegar-se a sítios que estão no Neolítico ou na Idade do Ferro.
Gosta de encontrar tudo intocável…
A única frase que cito no início da minha tese de doutoramento é de Paul-Émile Victor, o primeiro etnólogo francês e o primeiro do mundo a viver com esquimós durante muitos anos. Foi ele que fotografou a vida esquimó antes do desaparecimento. Viveu até com uma rapariga esquimó num iglu e não a trouxe para França porque achou que ela iria ser muito infeliz. Na última entrevista que deu perguntaram-lhe o porquê de todas as viagens. E ele respondeu: “Eu estava à procura de sociedades felizes.” Acho que é isso que me transporta sempre.
Procura sociedades felizes porque não acredita nesta?
Eu tive uma educação bastante marxista. Ainda nos anos 70 comecei a ler muito sobre ecologia política e isso dá-nos um background de crítica social grande. De certa maneira, sim, fui à procura de sociedades felizes. E creio que é essa a démarche de qualquer antropólogo. Os antropólogos estudam sempre uma sociedade para criticar outra, normalmente a deles.
Depois de voltar da Índia, terminou a licenciatura, foi professor de físico-química em Cabo Verde e começou o mestrado em Política Agrícola e Desenvolvimento Rural na Universidade de Montpellier.
Sim, mas só lá estive três meses porque fui chamado pelo exército português. Fui-me apresentar em Lisboa, fiz nove dias de tropa e puseram-me fora.
“Os antropólogos estudam sempre uma sociedade para criticar a deles”
Deram-lhe a razão?
Fiz desobediência civil, sentei-me no chão. Apliquei tudo aquilo que tinha aprendido nos livros. “Nenhuma organização pode vencer o indivíduo se este não se verga às regras da organização”, dizia Mahatma Gandhi.
Depois não regressei a França porque tinha perdido o mestrado. Fui para a Tunísia. Não tinha a mínima intenção de trabalhar. Queria aprender e escrever. Interessava-me muito pelos movimentos islâmicos emergentes e queria compreender o que estava do outro lado. Depois voltei a Vila Real, fui professor em Santo Tirso e acabei por voltar à Índia, em Julho de ’92.
Foi a partir dessa segunda visita à Índia que se decidiu por estudar ecossistemas e sociedades duráveis. Encontrou-os primeiro em Sariska, com os gurjar, depois em Montesinho e, por fim, em Niamei, com os gourmantché. Estes estudos culminaram com a inauguração da exposição no Museu Nacional de Ciências Naturais de Espanha, que está patente até 31 de Maio, e com o lançamento de um livro, que amplia a informação da exibição, publicado em Fevereiro com 2100 exemplares.
Sim, finalmente. Dez anos de missões de terreno, escrita de artigos e entretanto surgiu a exposição. Passei muito tempo a prepará-la.
Como surgiu o convite para exposição?
Quando comecei a estudar os lobos fui entrevistar o Fernando Palacios, o mais importante investigador de lobos da Europa, que está associado ao Museu de Ciências Naturais. Ficamos amigos e desde aí ele sempre esteve a par do meu trabalho. Em 2004, veio a minha casa e viu as minhas colecções. Propôs-me fazer uma exposição retrospectiva da minha carreira. Foi uma instituição de alto nível europeu que reconheceu o valor dos meus trabalhos.
A exposição foi inaugurada a 5 de Junho de 2010, fica até 31 de Maio de 2011 e ocupa o edifício principal do museu. É a exposição comemorativa do estado espanhol do Ano Internacional da Biodiversidade. Estão lá cerca de 400 objectos, fora as fotografias. Tudo meu, excepto três peças. No seguro aquilo vale 570 mil euros. Tenho lá um pote de veneno para preparar as flechas que só há mais um em todo o mundo.
É bolsista há muitos anos. Quer continuar a viajar ou gostava de estabelecer-se?
Eu sou o campeão das bolsas. Vivo das bolsas há 18 anos, devia escrever um livro. Agora vou tentar uma integração. No meu projecto para a FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia [entidade que financiou a última bolsa], consta a escrita de um livro teórico grande que vai compilar tudo o que eu fiz. Vai ser a minha cátedra. Como tenho 48 anos, já estou a ficar velho. Agora vou passar à fase de procurar um sítio para ensinar jovens.
Em Portugal?
Portugal não. Portugal tem desde há várias décadas a oportunidade de ter um génio científico, artístico, ecológico e humano vivo no seu solo e mandaram-me para o exílio. Vou concorrer para a FCT para uma próxima investigação e entretanto tiro a “Habilitation à Diriger des Recherche”. Em França só se é director de investigação aos 45/50 anos. Ao contrário daqui, ninguém dá aulas na faculdade sem doutoramento. Mas cá é um sistema fechado reservado a um grupo.
“Vou doar as minhas colecções à casa real espanhola”
E qual é a próxima investigação?
Vou estudar o urso pardo ibérico. Vou começar já em Julho nos Pirinéus franceses. Vou viver com pastores, sentir o animal, ver como se move, como pensa, como sonha. O governo francês fez o programa de conservação de uma espécie mais caro da história, o do urso dos Pirinéus. Mandaram vir ursos da Eslovénia, que não são iguais, e já perderam uns quantos.
Também vou investigar a história do urso em Portugal. O meu sonho de vida é ver ursos livres em Portugal. Ninguém se preocupa com o último urso que morreu em território português entre 1900 e 1920. Eu quero saber. Depois vou elaborar uma grande obra europeia, que cruza dados dos ursos do Leste e ibéricos.
E a exposição? Vai levá-la para outro país?
A exposiçao poderá ter itinerância em Paris, no Musée du Quai Branly, com uma ligação para um ciclo de conferências associado ao Muséum Histoire naturelle, e em Lisboa, se alguém se mexer, pelo menos já têm as propostas. Em Niamei terá muito provavelmente financiamento de Espanha.
Vou doar as colecções à casa real espanhola. Ainda hoje falei com a secretária do Príncipe das Astúrias. Não tenho dinheiro para as tratar e a casa real trata de certeza. Para Portugal nunca as traria. É uma vergonha. Eu quero que as minhas colecções brilhem e Espanha é que quis fazer a exposição. Logo, vai para lá. Nunca me passou pela cabeça deixá-las em Portugal.
Artigo corrigido às 16h30 de 16 de Maio de 2011