O mercado de trabalho pode ser apenas um dos sítios onde há preconceito em relação a quem gagueja. “O gago perde muitas coisas na vida. Desiste de frequentar cursos por ser gago e vê-se impossibilitado de obter determinados empregos”, explica um artigo de Pedro Aires de Sousa, terapeuta da fala no Hospital Pulido Valente, em Lisboa. Brito Largo, terapeuta da fala do Hospital Universitário de Coimbra (HUC) partilha da mesma opinião. “Há uma certa renitência em aceitar pessoas que gaguejam para a ocupação de alguns cargos e determinadas funções que não podem ser desempenhadas por uma pessoa que gagueje”, explica.

Não foi o que aconteceu com Mário Dias e Luísa Afonso. Em Portugal, cerca de 100 mil pessoas gaguejam. Mário e Luísa fazem parte das estatísticas, mas a gaguez há muito que deixou de ser um obstáculo no caminho deles. Hoje esta dificuldade na fala representa uma pequena pedra, que não vão usar para construir um castelo, mas sim para marcar a diferença.

Num mundo onde não há lugar para gagos, Mário Dias, de 58 anos, que começou a gaguejar por volta dos quatro, chegou e venceu. É locutor de rádio da estação TSF há 22 anos e a gaguez nunca foi impedimento, porque é dono de uma característica especial: ao microfone não gagueja. “Nunca encontrei uma explicação lógica para não gaguejar ao microfone, porque é uma coisa onde a malta normalmente gagueja, mesmo os que não são gagos”, conta Mário Dias, que nunca considerou que a gaguez pudesse ser um impedimento para a realização de um sonho. “Achei que estava ao meu alcance”, explica. “As pessoas que me ouvem na rádio não desconfiam que eu gaguejo”, conta o locutor.

Luísa Afonso tem 24 anos e terminou o curso de Ciências Farmacêuticas com mérito, na Universidade do Porto. Começou a gaguejar por volta dos três anos e, neste momento, trabalha numa farmácia e conta que exerce “todas as funções no local de trabalho, à excepção de atender o telefone”. Também para Luísa, a gaguez nunca foi uma “barreira impossível de ultrapassar”.

Ambos sabem que o “gaguejanço” pode aparecer em qualquer altura, mas há situações em que se manifesta mais. Mário gagueja mais quando está cansado ou muito irritado e Luísa quando está “nervosa” ou “ansiosa”, diz a farmacêutica. Além destas situações, também há expressões que lhes custa mais a dizer. Palavras que envolvam as letras “t” e “r” são algumas delas, explica Mário.

O preconceito

“As pessoas que gaguejam ainda são vítimas de muito preconceito. Quando alguém começa a falar e gagueja, no rosto do outro vê-se pelo menos uma expressão de espanto”, explica Brito Largo.

A escola foi um período complicado da vida de Mário e Luísa. “Quando uma pessoa gagueja não fala como os demais e em alturas, na escola primária e depois no liceu, houve gozo, porque a miudagem neste género de coisas é um bocado perversa”, confessa o locutor. E ainda hoje, “às vezes, num café ou num restaurante, há um sorrisinho parvo”. Também para Luísa as crianças foram “más” e na escola havia “muito gozo”, conta.

Ler em voz alta pode ser um dos maiores constrangimentos para um gago. Com receio de ser alvo de gozo pelos colegas, a farmacêutica pedia aos professores para não o fazer. Já Mário Dias nunca teve problemas com isso porque, à semelhança do que faz ao microfone, “habitualmente não gaguejava quando lia em voz alta”.

O medo do preconceito leva quem gagueja, em algumas situações, a tentar esconder essa dificuldade. Luísa já o fez e ainda tenta em algumas situações esconder, mas sabe, no entanto, que “quanto mais se esconde, mais a gaguez se manifesta”, explica Brito Largo. Mário apercebeu-se disso cedo e nunca tentou “fazer um grande esforço para não gaguejar nesta ou naquela situação”.

A aceitação é importante

“Aquilo que as pessoas valem não se mede por aquilo que gaguejam e a gaguez não impediu alguém de ser rei”, como é dito no filme “O Discurso do Rei”, de Tom Hooper, galardoado pela Academia, entre outros, com o Óscar de Melhor Filme 2011. É este o espírito que, segundo o terapeuta Brito Largo, deve estar na cabeça de um gago, de modo a facilitar a aceitação do problema.

Se no início era complicado, hoje já é mais fácil aceitar a gaguez. “Já é uma coisa normal para mim, já me habituei à ideia”. Apesar disso, ainda é “complicado” para a farmacêutica “lidar com a situação”, explica. Já Mário Dias considera que a gaguez já é “um dado adquirido” e convive bem com o problema.

Faz, também, parte da aceitação assumir perante o interlocutor que se gagueja. “Há uma responsabilidade das pessoas que gaguejam de informar os outros que têm essa dificuldade no discurso”, sublinha o terapeuta. Se tal não acontecer e se o interlocutor “fingir que o outro não gagueja”, gera-se um “processo comunicativo falso e difícil”. “Tem de haver honestidade no processo comunicativo para que ele funcione” e, assim, “os gagos gaguejarão menos”. “Falar sobre estas coisas é a melhor maneira de evitar qualquer estigma e dificuldade de comunicação”, explica Brito Largo.

O papel dos terapeutas da fala passa por fazer os gagos aceitarem essa dificuldade. E foi nesse sentido que Mário e Luísa procuraram a terapia para atenuar um problema que não tem cura.

“É fantástico verificar que existem pessoas que embora gaguejem são felizes, desempenhando com sucesso as mesmas funções que outros, ditos não gagos, sendo cantores, políticos, cientistas, pais, mães”, remata Brito Largo. E, para alguns, ser gago até tem vantagens. “Há quem diga que os gagos e as gagas têm um certo charme, não sei se é verdade ou mentira”, brinca o locutor da TSF.