O auditório da Biblioteca Almeida Garrett, no Porto acolheu, a 27 de setembro, o lançamento da última obra de Valter Hugo Mãe, três dias depois do seu lançamento em Lisboa.

Depois da comoção provocada pela sua intervenção na FLIP, Festa Literária Internacional de Paraty, há dois meses, que o escritor identificou como “uma aventura extravagante”, Valter Hugo Mãe vê “O Filho de Mil Homens”, da editora Alfaguara, entrar diretamente para o primeiro lugar do top nacional, na semana do lançamento.

No átrio do auditório esteve em exposição um grupo de ilustrações sob o mesmo título – “O Filho de Mil Homens” -, obra que serviu de mote para o trabalho de 23 ilustradores nacionais, entre eles André Letria, Isabel Lhano, Teresa Lima ou Esgar Acelerado.

A grande aventura afetiva

Crisóstomo, aos 40 anos, sentia a tristeza de não ter um filho, “via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios (…) e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía”. Quando encontrou Camilo, de 14 anos, deixado sozinho na vida pela morte do avô, Crisóstomo “pensou que aquele era seu filho”. É desta forma que Valter Hugo Mãe começa a desenhar um mosaico de personagens carregadas de ausências e que compõem, cada uma com o seu passado, os primeiros capítulos do livro. Apenas mais à frente, na narrativa, as personagens se conhecem e criam espontaneamente vontade de se pertencerem.

Numa conversa conduzida por Anabela Mota Ribeiro, Valter Hugo Mãe explicou que a tese do livro é mostrar como, espontaneamente, a vida das pessoas se entrelaça e cria uma rede de relações – uma família que se inventa. É nesse património afetivo que “nos pousamos e nos vamos segurando, algo que faz parte da inteligência de estar vivo”. Nem sempre as relações de sangue são as mais importantes. Essa é a grande aventura afetiva da humanidade: “as pessoas por quem eu sou incondicionalmente”, afirma o escritor. Apenas a vontade de pertencer a alguém é a definição pura de família.

Hugo Mãe afirma que escreveu este livro para ter um filho e pensa já no próximo que escreverá: “para ter uma filha – a história de uma mulher enquanto filha e de uma mulher enquanto mãe”. Para o escritor, um livro é um ato de generosidade. É isso que gostaria de deixar às pessoas. Um livro tem tudo a ver com estar completo pois “o amor não é uma coisa linear”.

O seu maior esforço neste livro foi fazer com que Crisóstomo fosse feliz. “Não que o Crisóstomo seja eu, mas ele é no fundo quem eu gostaria de ser”, disse. Às restantes personagens, que se sentem pela metade, pela sua dimensão física ou porque são reduzidas pela sociedade, o escritor destaca a sua autenticidade. “São pessoas que não têm por que mascarar o que dizem, inspiradas nas pessoas do lugar onde vivo.”

A escrita e a vida

Cada vez que começa a escrever um livro, Valter Hugo Mãe anota todos os “nomes, palavras, expressões, vozes” que lhe surgem “do nada”. São momentos dispersos, que mais tarde podem ou não incorporar a narrativa. O livro será uma “versão depurada de todas essas ideias”. “Tenho que chegar a um ponto no livro em que nada me incomode”, realça.

Falou sobre autores: Kafka, que o fascinou sempre, a poesia de Herberto Helder, Luís Miguel Nava, Al Berto, Adília Lopes ou Clarice Lispector, a única existencialista para quem tem paciência, por ser “um fenómeno literário em redor do que é e do que não é”. Saramago ou Lobo Antunes e os anos 80 são como o tempo de afirmação de ambos, que o autor considera a um nível semelhante.

Aos 40 anos, o autor revê-se na frase do livro “assumir a tristeza para reclamar a esperança. Todos temos uma distância do sofrimento. O conhecimento dessa distância, mostra a que distância estamos da felicidade”.

A “solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós”, remata.