D. Manuel Clemente disse, numa carta dirigida aos diocesanos do Porto, que a Igreja quer estar na primeira linha da promoção do bem comum. Numa altura de crise económica, e até de valores, acha que a Igreja está a cumprir o seu papel?
É muito difícil responder em absoluto. Em princípio, faz o possível. E quando falo em Igreja estou a referir-me à implantação territorial. Veja-se por exemplo a Diocese do Porto que engloba cerca de dois milhões de habitantes. Só nós (aqui no Porto) temos quase quinhentas paróquias ou equiparadas, que estão ao serviço da população com uma oferta religiosa mas que implica também uma atenção social. Para além das paróquias, contamos com uma grande quantidade de instituições de solidariedade social que estão ligadas à Igreja. São estas instituições que são resposta ao que é mais imediato e mais urgente no acompanhamento da população, de doentes, de pessoas idosas, de ajudar os pais com creches. É claro que o grande apoio que Igreja oferece passa, especialmente, pelo apoio religioso, espiritual e anímico.
D. Manuel Clemente admite que um encontro entre a Troika e as Instituições de solidariedade que estão no terreno, incluindo a própria Igreja, daria aos examinadores uma visão mais correta do País. Acha que a Igreja está mais ao corrente da situação do país do que os nosso governantes e sindicatos?
A Igreja está a par dos problemas da sociedade a outro nível. As instituições de solidariedade social, que não são só da Igreja (embora as da Igreja sejam a maior parte) conhecem uma realidade fundamental. E essa realidade engloba as necessidades das pessoas… Por isso, é fundamental que quem tenha de decidir, quer nacional quer internacionalmente, tenha em conta o trabalho das pessoas que estão no terreno. Só sabe quem lá está. A Igreja tem mais de quatro mil paróquias, não há nenhuma rede tão presente no território que tenha valências socias ou sócio caritativas como nós. Se as pessoas querem saber realmente o que se passa, devem ter isso em conta.
Quando vemos tudo espremido, em termos de factos averiguados, acaba por ser muito menos do que aparece no título
Foi lançado em Itália recentemente um livro intitulado “Sua Santidade, as cartas secretas de Bento XVI”, que aborda vários temas incluindo a corrupção, escândalos de pedofilia e homossexualidade no seio da Igreja. Vê com preocupação o desenrolar destes acontecimentos?
Vejo com preocupação duas coisas: essas coisas negativas, quando existem, e depois elas serem muitas vezes mediatizadas de modo sensacionalista. Não é a melhor maneira de as tratar. Nós, geralmente, lemos esse tipo de livros (esse por acaso ainda não li, nem sei se o vou ler) e, no final, quando vemos tudo espremido, em termos de factos averiguados, acaba por ser muito menos do que aparece no título. Esta mediatização negativa de coisas que ainda têm de ser averiguadas não ajuda muito à resolução dos problemas. Agora que os problemas existem, existem. Enquanto existir humanidade, e esperemos que seja por muitos séculos e milénios, vão existir sempre aspetos negativos. Portanto, quando há problemas negativos tem que ser identificados, tratados e resolvidos: se são criminais há instâncias para os resolver, se são morais, que é o mais comum, também há maneiras de serem superados. Por isso é que, em relação à Humanidade, nós não devemos idealizar nem desistir. Devemos ser realistas.
O que é a Igreja pode fazer para impedir que estes problemas se repitam?
A Igreja pode fazer tudo o que poder, mas é muito difícil falar em abstrato. Temos que perceber o que é, o que aconteceu, onde é que aconteceu e que solução dar ao problema. Depois há medidas preventivas, que têm a ver com a formação. Formação das pessoas e do seu carácter, que às vezes não é fácil nem imediato. No ser humano há coisas positivas que só com o tempo se revelam e, há coisas negativas que ninguém suspeita. O ser humano é mais dissimulado do que, às vezes, parece aos seus próprios olhos. Nós, falando agora como ser humano, tanto nos admiramos como nos desiludimos. Algo que também tem a ver, e muito, com uma certa pedagogia social. E, infelizmente, nós reparamos que a sociedade não é suficientemente pedagógica, deixa muito ao campo individual. Às vezes a sociedade faz uma grande admiração com aquilo que ela própria provocou.
Em relação aos jovens, o problema da identificação não é só com a Igreja, é com tudo que seja institucional
Na sua opinião, qual a razão para que os jovens se identifiquem cada vez menos com a Igreja?
Em relação aos jovens, o problema da identificação não é só com a Igreja, é com tudo que seja institucional. As gerações têm uma certa dialética: quando uma vai muito para um lado, a outra tende a ir para outro. De uma maneira genérica, o jovem, e antes do jovem o adolescente, tem um tumulto interior grande, até porque está a crescer. E esse crescimento numa primeira fase é até mais sofrido do que sentido. A pessoa não sabe o que se passa com ela, com o seu corpo, no seu entendimento. Isso provoca uma certa retração. Deixa de falar tanto como falava em casa, e no caso de pertencer a uma paróquia ou uma comunidade acontece o mesmo. Na escola retrai-se do grupo mais próximo, mais chegado, e reage instintivamente a tudo quando lhe queiram impor. Nesse sentido a juventude é anti-institucional. Em relação às comunidades cristãs e católicas, como em relação às instituições em geral, a primeira atitude é de desconfiança e de retração, e daí que se requeira a criação de boas redes de amizades. Isto de estar envolvido num ambiente de cordialidade e simpatia, é que é o grande trabalho. Porque reconstruir a comunidade, seja cristã ou seja outra qualquer, na adolescência até à idade madura, requer muita aplicação.
Então o que está a falhar?
Hoje em dia, há possibilidades tecnológicas e cada um pode fazer o seu mundo individual sem passar pelas mediações da relação. As famílias têm poucos filhos, aquele ambiente tradicional já não é assim. Às vezes, vemos um agregado familiar pequeno e, quando estão num espaço público, em vez de estarem a conversar, estão cada um com o seu telemóvel. Tudo que seja criar rede, e não no sentido tecnológico, mas rede humana, é prioritário e não é fácil. É um grande desafio. Não só para a Igreja mas para a sociedade em geral. Os vários grupos de jovens são fundamentais. Nesses grupos, há um clima de amizade e de confiança mútua e também há um clima de exigência: eu também tenho de atender ao interesse do outro. Não estou com certeza à espera que estejam todos em função do meu interesse.Hoje os desafios são graves, o que surge devido à individualização da vida. Passa-se do indivíduo para o global e omitem-se as mediações sociais que são necessariamente necessárias. Assim, não sei o que estamos a formar.