Há uma noite de tempestade, um médico chamado de urgência, um doente a mais e um cavalo a menos. “É um médico sem instrumentos, sem meios para se deslocar sem alguém que lhe empreste um cavalo. É um médico com as suas capacidades postas em causa, consciente da sua nudez”, refere Tó Maia, que – à semelhança da personagem de Franz Kafka – assistiu a um “trabalho de loucos” para encenar “Um Médico Rural”.

O teatro no Porto está estrangulado. Ponto final. Parágrafo.

“Um Médico Rural”, pelo Teatro Aramá (música de Elísio Donas, teclista dos Ornatos Violeta), “surge de uma vontade naïve que arrastou algumas pessoas e outras pessoas que se vão juntando a essas pessoas”, contou ao P3 o encenador Tó Maia, sentado numa cadeira num armazém gigante junto ao Cace Cultural do Porto, no Freixo, onde tudo tem acontecido.

Um Médico Rural

Companhia Teatro Aramá

Local Cace Cultural do Porto, Rua do Freixo 1071

Data De 25 de Janeiro a 3 de Fevereiro (21h45)

Preço seis euros

É um sítio frio, húmido, com uma energia contagiante. “É uma loucura”, resume. Uma loucura que encaixa estranhamente no texto quase centenário de Kafka, nos pensamentos trágicos (do médico e do teatro), no labirinto de burocracias (que envolvem o médico e o teatro), no “contexto sobrenatural e na solução surrealista”.

É “um jogo plástico não convencional”, sugere Tó Maia. É uma peça de peças soltas, de objetos adaptados, de “médicos” e outros técnicos chamados de urgência, de armazéns que metem água, de dias e noites de ensaios ao frio. Há uma “ligação misteriosa” entre o texto metafórico e as pessoas que construiram esta peça – peça a peça. “Ambas são histórias de fé e de ciência”, diz Tó Maia, encenador de uma peça sem apoios, sem ninguém a pagar nada, “sem ninguém a cobrar nada”.

Sucata rima com cenografia

Hernâni Miranda é o médico. Hernâni Miranda é também o motorista quase oficial do grupo (antes dos ensaios faz a ronda pelo Porto com o seu carro comercial que alguém já comparou a um “carro de refugiados”), cenógrafo e um dos responsáveis pela conceção plástica do espetáculo que preenche os cantos do armazém. “Existe a vontade, mas não existem meios. Temos que construir tudo para montar a peça depois de meses e meses à procura de um espaço”, explicou ao P3 Hernâni, especialista em polivalência – ao estilo Aramá. “Até à estreia vamos dar brilho a uma máscara ou apertar um parafuso”.

Os cenários (“universos, caixas onde cada personagem habita”, sugere Tó Maia) são grelhas de colchões, carrinhos de padeiro, criaturas grotescas e marionetas kafkianas. “Andamos na rua a olhar para os lados”, explicou ao P3 Pedro Esperança, cenógrafo experiente e ator estreante. “Costumo dizer que a peça foi construída com coisas que encontrei no caminho entre a minha casa e o Cace Cultural”. Vidros, portas, caixilhos, chapas… “Aproveitamos coisas até na sucata”, completa Tó Maia.

“A peça está a sair da alma e não só do corpo”, diz Hernâni. “Não pertencendo a uma estrutura apoiada, sentimos a necessidade de fazer coisas. Todos sabemos que era mais cómodo estar em casa sentados no sofá…”

Samuel Silva acaba de chegar com os slides dos cavalos. E um desabafo. “Há aqui uma força visceral para manter as pessoas vivas. Construiu-se um teatro para apresentar uma peça”.