Ao final da manhã do último dia da conferência “O Regresso do Jornalismo” aconteceram três debates simultâneos. Em discussão estiveram o jornalismo freelance na era digital, a influência dos meios multimédia na produção noticiosa e os modelos para o jornalismo digital em Portugal. O JPN acompanhou este último, moderado por João Paulo Baltazar e com o painel constituído por Simone Duarte, Henrique Monteiro e José Alberto Carvalho.

Simone Duarte, editora executiva do Público online, apresentou a evolução das estratégias multimédia deste órgão e deixou uma certeza: “Trabalhar para o online não é escrever um texto. É muito mais do que isso”. A era digital obriga o jornalista a expandir as suas competências e a trabalhar para várias plataformas recorrendo a vários meios. Na mesma proporção aumenta a sua responsabilidade para com aquele com quem assume um compromisso: o leitor.

Jornalismo cinemático na SIC

O último dia da conferência “O Regresso do Jornalismo” abriu com Jorge Pelicano e João Nuno Assunção, dois dos responsáveis da série “Momentos de Mudança“, exibida na SIC, em horário nobre, por ocasião do 20.º aniversário da estação. O projeto tinha como objetivo retratar “momentos de mudança, novas fases da vidas de pessoas, as passagens/transições” e a opção foi criar uma série de jornalismo cinemático, um género “entre a grande reportagem jornalística e o documentário puro e duro”. Para Jorge Pelicano, este trabalho representou uma inversão na ordem natural do jornalismo: “O jornalismo, normalmente, relata aquilo que já aconteceu. É esse o conceito normal de jornalismo. Neste projeto, o desafio foi antecipar o que iria acontecer, com toda a imprevisibilidade que isso acarreta”.

No jornalismo cinemático, as preocupações estendem-se para lá do trabalho de campo do jornalista e, para Pelicano, “a pré-produção é mais de meio caminho andado para um bom resultado”. “Momentos de Mudança” obrigou a uma convergência de meios e o audiovisual reparte-se em duas partes iguais: som e imagem têm a mesma importância. “Não quisemos acrescentar adereços de maneira a dramatizar. Quisemos deixar as imagens respirar e comunicar por elas próprias”, explica o repórter de imagem, que acrescenta: “90% das imagens são imagens naturais, isto é, não pedimos às personagens para fazer nada”. Apesar de todos os esforços e meios envolvidos, a equipa de “Momentos de Mudança” considera que apenas uma relação de confiança e proximidade com as pessoas permite contar a história: “Só assim conseguimos deixar de ser elementos estranhos àquele ambiente, conseguimos ser invisíveis”.

Apesar do projeto já ter sido transmitido na televisão, aproxima-se uma nova fase: a web 2.0. Ao audiovisual será acrescentada informação interativa que permitirá aprofundar e complementar as histórias retratadas. Apesar do sucesso, a equipa reconhece que, se fosse hoje, não conseguiria abraçar este projeto: “O jornalismo está cada vez mais empobrecido. As redações não conseguem disponibilizar pessoas e meios. É por isso que [este registo] é tão pontual”.

“Não se relacionar com os leitores não é uma opção. No Público, por exemplo, temos uma área de leitor, onde existe incentivo à sua participação. Implementámos um sistema de reputação baseado na sua atividade no site”. Para Simone Duarte, também os órgãos de comunicação têm de perceber o novo paradigma: “Hoje em dia o Facebook é um jornal e o Youtube um canal de TV”. Para a editora do Público online, a crise é financeira, não de conteúdos. “A Kodak confundiu filme com imagem e deu-se mal. Na indústria da música, confundiu-se CD com música. O modelo de negócio está falido, mas o jornalismo não morreu”.

Uma crise que, para Henrique Monteiro, deriva da atitude conformista que o jornalismo adotou: “Ficámos arrogantes, descurámos a qualidade e pensámos que qualquer porcaria serve para o leitor. Agora estamos a perceber que não é assim”. Para o diretor de conteúdos do grupo Impresa, a tendência de futuro é que “o jornalismo mais popular migre para o digital e o jornalismo mais erudito continue no papel”.

Apesar da era digital obrigar a uma transformação da produção noticiosa, o jornalista considera as ideias de jornalismo online grátis e de jornalismo de cidadão “perversas”, e tem dúvidas sobre o jornalista multitarefas: “Não acredito no backpacker journalist. Aquele gajo que faz vídeo, texto, fotos, tudo e mais alguma coisa. Não se pode exigir que alguém faça tudo”. Henrique não acredita na viabilidade do jornalismo grátis, mas alerta que “a venda de notícia a notícia é sinónimo de destruição da redação”. Contudo, quaisquer que sejam as transformações, mostra-se otimista: “Nenhum meio, até agora, destruiu o anterior. O jornalismo não acaba”.

Uma ideia corroborada por José Alberto Carvalho: “Antevejo tempos áureos para o jornalismo e tempos difíceis para as empresas da área”. O diretor de Informação da TVI lamenta que as pessoas não paguem pelo jornalismo e deixa duas questões: “Será que o querem mesmo? Que se interessam?”. O jornalista considera que, “hoje em dia, vivemos num panorama em que as pessoas veem a informação banal como uma ilusória sensação de saciedade”, quando o jornalismo devia fazer jus ao seu legado “de tecnologia, de necessidade dos cidadãos e da evolução tecnológica”, dando o exemplo da televisão, que considera “o maior ecrã de multimédia dos nossos dias”. A discrepância entre o modelo de negócios e a apresentação dos conteúdos torna-se o maior problema do setor, porque, alerta, “não é o jornalismo distintivo que alimenta um jornal nem paga aos profissionais”.

Os prós da narrativa não ficcional

Na antecâmara da sua apresentação, Mark Kramer falou ao JPN sobre as virtudes da narrativa não ficcional: “Usa-se uma voz pessoal em vez da voz oficial de um qualquer outro artigo de jornal. E, assim sendo, abre-se um leque de possibilidades que inclui muito mais espaço para factos, emoções, e explicações menos formais”. Para o diretor da conferência “Power of Narrative”, a proliferação deste tipo de jornalismo representa um reforço da isenção e rigor: “É a democratização informada de opiniões que não são controladas por lobbies de jornais ou empresas de media”.

Mark Kramer aproveitou ainda para elogiar o evento, pois considera que “o jornalismo em Portugal é tão ou mais sofisticado e entusiasmante” do que nos outros países onde costuma estar presente, além de ser, na sua opinião, “a melhor forma de aprender”, para os estudantes.

À tarde

A sessão da tarde começou com dois projetos que abrem a porta do futuro do jornalismo. Dois projetos que, além da conjugação de novos meios e plataformas, apresentam novas visões sobre como procurar e contar uma história. Um elogio ao jornalismo na era digital. O primeiro desses projetos é o do jornalista Tiago Carrasco, do repórter de imagem João Fontes e do fotógrafo João Henriques.

Os três, depois de mergulhados no desemprego e na precariedade, decidiram atravessar África, de carro, rumo ao Mundial de futebol da África do Sul, de 2010. Pelo caminho procuraram histórias ligadas ao futebol e encontraram-nas. Desde jovens amputados que continuavam a jogar até feiticeiros que tentavam influenciar o decurso dos jogos, tudo ficou compilado no projeto “Até lá Abaixo“. “Quem passa por uma experiência como estas não consegue ficar em casa. É viciante”, conta Tiago Carrasco que, depois de ver na televisão as revoltas árabes, decidiu chamar os seus “camaradas” e partir para o terreno.

“O jornalista que fica na redação é amorfo e doente. É cá fora que acontecem coisas e se encontram as pessoas e se sabe das histórias”. Seguiu-se “A estrada da revolução“, já vendida à Al-Jazeera e com perspetivas de chegar a mais de 30 canais em todo o mundo. Um projeto que não afastou o fantasma da precariedade, mas reforçou uma convicção: “Não vencemos a crise económica. Qualquer um de nós pondera hoje emigrar. O que vencemos foi uma crise motivacional. Agora acreditamos que a nossa formação valeu a pena e que somos capazes de fazer bom jornalismo”.

O outro projeto apresentado foi o “The Atavist”, um compilador de narrativa não ficcional multimédia. O “The Atavist” tem dois tipos de conteúdo: os seus e os dos leitores. Qualquer um pode criar uma história usando a aplicação “Creatavist“, uma plataforma que ajuda na produção de jornalismo multimédia para dispositivos móveis e para a Internet. A história mais descarregada atingiu os 50 mil downloads. Para Charles Homans, editor executivo, “é muito mais atrativo trabalhar neste espaço do que há dez anos atrás”, porque são novos os desafios para envolver o leitor: “Há pessoas que, se lhes pedir que comprem uma revista, agem como se tivesse batido na mãe deles”.

Tão interessante como um vídeo de um gato

Amy O’Leary também falou ao JPN sobre “Como tornar o jornalismo viciante na era digital”. Para a jornalista, os recursos multimédia são ferramentas para atingir um fim e não, por si só, uma finalidade. Mas, afinal, qual o fim? “O desafio para o jornalismo é aproveitar as histórias que são importantes e contá-las duma maneira que faça com que as pessoas queiram voltar a ler. Histórias emocionalmente satisfatórias, surpreendentes e reais”.

Para a norte-americana, o segredo de uma boa história é ter “um bom contador de histórias, ter bons personagens, ser surpreendente, apresentar ao leitor algo que signifique alguma coisa para ele”. Chegar ao leitor numa altura em que decrescem os hábitos de leitura é um desafio que Amy apressa-se a desmistificar: “As pessoas passam muito tempo online, no telemóvel, e se nós conseguirmos ser tão interessantes para eles como um vídeo de um gato engraçado ou uma lista interessante, assim conseguimos comunicar as histórias que achamos que têm valor”.

“O Regresso do Jornalismo” que é para regressar

Para o organizador Paulo Moura, “O Regresso do Jornalismo” é importante para que os jornalistas consigam discutir o seu meio. “Os jornalistas parece que estão um pouco apáticos a assistirem a toda esta mudança mais num confortável papel de vítimas do que num papel de agentes ativos e de protagonistas da mudança”. A presença de oradores internacionais visa o “intercâmbio de soluções” na perspetiva de um futuro onde, refere, “temos de passar o bom jornalismo para o online. Não podemos pensar que os bons jornalistas vão ficar agarrados ao papel e vão morrer com o papel”. Para Paulo Moura, o evento “é para fazer todos os anos”.

Nos três dias (ver artigo do primeiro dia aqui e do segundo dia aqui) d'”O Regresso do Jornalismo”, foi o futuro da profissão que esteve em discussão. Um exercício de reflexão levado a cabo por profissionais portugueses e estrangeiros que partilham as mesmas angústias. A falência da viabilidade económica de alguns meios não muda a convicção de um trabalho por uma causa: informar. Os novos desafios da era digital apresentam uma mudança de paradigma que é vista como enriquecedora. O jornalismo começa a sua metamorfose primeiro pelos que exercem a profissão e, depois, por aqueles que a desejam exercer. No meio de tantas indefinições e incertezas, cimenta-se o espírito de combate. Que futuro? O que os jornalistas quiserem.