Já diz o “Fado da Tristeza” que “o Fado quando é triste é que é verdade”. É isso que acha?

Não propriamente. Acho que o Fado tem tanto de tristeza como tem de alegria, na realidade o Fado fala muito das rotinas diárias que muitas vezes contém momentos tristes, momentos mais rotineiros, outros mais engraçados, até momentos de ironia. Eu acho que a verdade encontra-se em quem canta o Fado, em quem consegue realmente entregar-se, interpretar e passar a emoção verdadeira daquele poema para as pessoas.

Desde os anos 90 que começou a surgir uma nova geração de fadistas, desde Camané a, mais recentemente, Gisela João e Ana Pinhal. O que acha que trouxeram de novo ao Fado?

Olha que pergunta difícil (risos). A ideia que tenho é que talvez terá sido com o Camané que o Fado começou a chegar mais aos mais jovens, comigo foi mais ou menos assim. Por acaso gosto bastante, quer de um, quer de outro (risos). Têm as suas particularidades e não consigo identificar o que poderá ser tão diferente para nos chamar a atenção. Mas sim, inovaram pelo menos nos arranjos e até na forma de cantar. As pessoas vão ganhando alguma liberdade a cantar o Fado e trazem essa contemporaneidade. Isso também ajuda a aproximar novos públicos.

O Fado são palavras muito antigas. Como é para si sentir essas palavras sendo tão nova?

“O trabalho do intérprete é também o trabalho de um ator”

No fundo aquilo que eu acho é que o trabalho do intérprete, seja de Fado ou de outro estilo musical, é também o trabalho de um ator. É importante ler bastante para tentar perceber o que aquela pessoa sentiu e para nos tentarmos colocar nesse papel. Depois há também um trabalho de escolha do poema. Há poemas que a mim me dizem mais, se calhar outro colega já fará uma escolha diferente. Sempre que tentamos ir de encontro a poemas que nos remetem para experiências que nós ou pessoas que nos são próximas já tiveram, são mais fáceis de depois serem interpretados com verdade, com sentimento.

É na capital que o Fado está mais enraizado. Como é ser fadista no Porto?

Eu não sei como é que é ser fadista em Lisboa (risos). Comecei a cantar Fado aqui. Já lá não vou há algum tempo. Incrivelmente, desde que comecei a cantar Fado tenho mais medo de ir a Lisboa (risos). Mas sim, em Lisboa há muito mais cafés, restaurantes e bares que têm Fado e muitos deles inseridos no meio dos bares dos mais jovens. E isso é muito bom, tens pessoas de várias faixas etárias a assistir. É provável que se consiga trabalhar mais em Lisboa. Apesar de haver muito mais fadistas, haverá também mais procura. Aqui no Porto, até agora, tem sido bastante agradável, neste momento estou a trabalhar na Casa da Mariquinhas que é uma das casas mais antigas, tenho colegas fantásticos, conheci gente muito boa, com quem aprendi muito. Até agora a experiência tem sido agradável.

Paulo Lima, um estudioso do Fado, disse que “Em Lisboa, o Fado parece mais permeável à contemporaneidade”, “No Porto, pode ser mais íntimo, ainda se encontram fórmulas antigas”. Concorda?

Na realidade, poderá ser que porque há muito mais fadistas, é natural que possa existir uma maior contemporaneidade na forma de cantar, na forma de interpretar e de tocar os temas, portanto, mais coisas novas no Fado. Mas eu acredito que isso não será pela diferença de ser o Porto ou ser Lisboa, mas será sim por ser um local em que há muito mais profissionais. Eu aprendo com o primeiro, o primeiro aprende com o segundo, o segundo aprende com o terceiro, portanto acho que sim, quando há mais profissionais juntos é mais fácil aprender, é mais fácil crescer e arrisca-se mais.

Quais os melhores locais para ouvir um bom Fado no Porto?

” Obviamente e em primeiro lugar, até porque foi a primeira casa que eu conheci de Fado aqui no Porto e agora, por ser fadista residente da casa, a Casa da Mariquinhas, junto à Sé do Porto. É para mim o sítio de eleição, uma casa muito bonita, das mais antigas, toda em pedra. Conheço pouco outros sítios, mas vários colegas meus falam muito bem do restaurante O Fado, no Largo de S. João Novo. Existe também na Ribeira o restaurante O Mal Cozinhado, tenho colegas que trabalham lá e, portanto, têm uma boa escolha de elenco. Em Matosinhos há ainda o Janelas do Fado, na rua Tomás Ribeiro. Existem também outros restaurantes no Porto, Matosinhos e Leça que vão tendo Fado uma vez por mês, de quinze em quinze dias, noites alusivas ao Fado. À tarde temos muitas casas de Fado vadio, que também é um bom sítio para se praticar.”

Como surgiu o seu projeto “Fado Violado”?

Surgiu antes até do Fado tradicional. Em 2007, eu e o guitarrista do Fado Violado, Francisco Almeida, fomos estudar Flamenco com uma bolsa de estudo. No final do 2.º ano lá, em 2008, lembro-me que o Francisco tinha comentado que um professor lhe tinha dito: “Ensina-me algo da tua arte, afinal estou a ensinar-te a minha” e ele realmente não sabia. Agora quando penso nisso à distância considero que estarmos longe faz-nos dar mais valor àquilo que é nosso e à nossa língua. Lembro-me de chegar um dia a casa e ouvi-lo a tocar algo que me parecia ser o Barco Negro, foi talvez o primeiro tema que nós começamos a interpretar no Fado Violado, e eu senti uma vontade imensa de cantar. Disse: “Eu conheço esse Fado! Fica muito bonito!”. Nós não tínhamos guitarra portuguesa nem uma viola, tínhamos uma guitarra clássica e a escola do Flamenco. E assim começamos. Eu liguei para casa, pedi à minha mãe que falasse com todos os outros familiares para me enviarem CD’s, livros de Fado… porque eu não tinha nada, eu não ouvia Fado. Quando vim a Portugal recolhi mais informação, fui ouvindo, fui aprendendo e fomos aos poucos montando aquilo que hoje é o repertório do Fado Violado. Agora já somos cinco, tem vindo a crescer, é muito bom.

Porquê essa “violação” do Fado? Qual a sua principal motivação para inovar?

Na realidade nós nunca tivemos essa pretensão de fazer algo inovador ou de fazer uma fusão, as coisas surgiram com a naturalidade de que falei há pouco. Era o que tínhamos, uma grande vontade de falar a nossa língua, uma grande vontade de interpretar Fados e a escola do Flamenco. Queríamos muito fazê-lo, então tentamos ao máximo aproximar a guitarra flamenca do som que poderíamos querer ouvir do Fado tradicional. O resultado foi-nos agradando e fez-nos convidar mais um elemento, a viola da gamba.

Há quem considere que quando o Fado é cantado de forma menos tradicional, deixa de ser tão Fado. Concorda?

Inicialmente senti dificuldades com o projeto porque as pessoas diziam, muitas vezes, “isto não é Fado”. Aquilo que eu queria que as pessoas sentissem era a minha música, muitas vezes eu digo: porquê colocar rótulos nas músicas? Isto é Jazz, isto é Blues, isto é Fado, isto é Samba, às vezes não faz falta colocar rótulos, faz falta fechar os olhos e sentir. E então se gosto, gosto, se não gosto, não gosto. Para mim o Fado pode estar em muitas coisas, não só na música, o Fado pode estar num poema, numa fotografia, numa personalidade que é fadista e pode não ser cantor nem músico. Para mim não é tanto nessas inovações musicais que se fazem que se encontra ou não o Fado.

“As pessoas não precisam de perceber o poema em si, desde que percebam a emoção que ele contém”

Como é cantar o tão português Fado no estrangeiro?

É emocionante conseguirmos perceber que as pessoas, mesmo não entendendo uma palavra, se emocionam e gostam. Quando conseguimos essa entrega, as pessoas não precisam de perceber o poema em si, desde que percebam a emoção que ele contém e isso é emocionante. Sentimo-nos completamente realizados por esse facto.

O seu objetivo passa por cativar um público-alvo diferente?

Não que seja um objetivo, mas considero que seja uma mais-valia. Todos os novos grupos que surgiram que são enraizados no Fado e na canção portuguesa, estou a lembrar-me dos Deolinda, arrastam consigo outros públicos. Pode não ser o objetivo deles, mas é o que acontece. Provavelmente pessoas que não ouvem Fado vão ver determinado grupo, que é já um grupo contemporâneo, e têm curiosidade em ouvir como são os originais. Isso aconteceu-me com o projeto Amália Hoje, lembro-me de ter ido ver um concerto e cheguei a casa a pensar: “Ora deixa lá ver como é que a Amália cantava isto”.

O que acha que afasta muitos jovens do Fado?

Apesar de haver agora um bocadinho mais de publicidade acerca do Fado, acho que é pouco. Eu vivi três anos em Espanha e senti que o Flamenco já estava enraizado nas crianças desde que nascem, praticamente. Na escola, as crianças já ouviam e já aprendiam um pouco da história do Flamenco, iniciando o seu conhecimento da cultura do país. Faz falta, aqui em Portugal, educar-se mais no Fado. Então é natural que chegue mais facilmente a jovens que estão mais atentos e curiosos.

Se tivesse de explicar a um jovem o que é o Fado, como explicaria?

“Mais do que as palavras é o sentimento”

É muito difícil explicar porque é uma coisa que se sente. É difícil explicar porque mais do que as palavras é o sentimento. Se calhar diria “Não te vou explicar, ouve e sente”. É muito fácil deixar que o Fado chegue a qualquer um de nós. Há sempre coisas com as quais nos identificamos, pode não ser aquele poema, mas há sempre aquele sentimento com que nos identificamos, seja uma tristeza, uma alegria, uma ironia. Mas por palavras não consigo explicar. Apesar de eu achar que é muito fácil as pessoas se identificarem, ainda assim não consigo justificar porque é que algumas não gostam e estou a tentar lembrar-me porque é que eu dizia que não gostava, talvez porque eu achasse que era a música dos mais velhos. Eu cantei o meu primeiro Fado aos 16 anos, não gostava nada, zangava-me muito quando ia a casamentos e a família pedia “por favor Ana, canta só aquele Fado!”. Ficava zangada mas, na realidade, quando cantava sentia-me na minha casa, aquilo era o meu quartinho. Mas, no final, ficava outra vez zangada e “eu não gosto nada disto”, meia orgulhosa, não sei bem explicar.