Começou esta quinta-feira mais um Correntes d’Escritas. Na verdade, não apenas “mais um”, visto que estes encontros literários na Póvoa de Varzim têm sempre algo de especial à sua volta. Muito mais nesta edição, que assinala os 15 anos do evento. Por isso mesmo, o primeiro dia não fugiu à regra.

Desde logo, com o anúncio do vencedor do Prémio Correntes d’Escritas 2014. Manuel Jorge Marmelo foi distinguido por causa da obra “Uma Mentira Mil Vezes Repetida” e admitiu que “receber um prémio destes, nesta altura, é um suplemento de ânimo” de que “estava a precisar ao fim de um ano e tal desempregado”. Ainda assim, em entrevista ao JPN, o ex-jornalista do Público reconhece a importância da profissão que tantos anos exerceu para este sucesso: “O jornalismo, no fundo, foi o ginásio onde eu fiz musculação para poder escrever e publicar ficção”.

Prémios atribuídos

Prémio Literário Casino da Póvoa 2014: Uma Mentira Mil Vezes Repetida, de Manuel Jorge Marmelo

Prémio Literário Correntes d’Escritas Papelaria Locus 2014: Jardins vazios de novembro, de Luísa Raquel Martins Morgado, sob pseudónimo de Hithu

Prémio Conto Infantil Ilustrado Correntes d’Escritas Porto Editora 2014: O Guarda-chuva de Mariana, da turma 4º. 1 SEV, da Escola EB1 de Sever de Vouga

(Prémio Literário Fundação Dr. Luís Rainha Correntes d’Escritas 2014 não foi atribuído a ninguém por falta de qualidade dos trabalhos apresentados)

“A literatura começa quando as pessoas têm voz própria”

Na sessão de abertura, personalidades como Maria Teresa Horta e Rui Zink foram unânimes ao afirmar a importância fulcral da Cultura e da literatura para superar o atual estado político e social vivido em Portugal. A autora homenageada na Revista Correntes d’Escritas 13 presenteou a plateia com a leitura de um poema dedicado à literatura e à necessidade urgente de torná-la cada vez mais presente no quotidiano. Já Rui Zink alertou para a importância da literatura nos momentos mais cinzentos, porque, afinal, “a literatura começa quando as pessoas têm voz própria”.

Aires Henrique Pereira, presidente da Câmara da Póvoa de Varzim, partilha da mesma opinião e acrescenta que só o investimento na Cultura alavancará o desenvolvimento. São iniciativas como o Correntes d’Escritas que trazem a autenticidade que torna a Póvoa de Varzim numa cidade competitiva. “Sabemos que a Cultura e o lazer são a nossa linha do horizonte, embora saibamos que esse horizonte é inatingível. É justamente por isso que o perseguimos: porque nos permite caminhar”, conclui. Dionísio Vinagre, secretário de Estado do Turismo, reforçou esta ideia ao sublinhar que a literatura serve como um caminho de apresentação de um destino e dá ao leitor a capacidade de conhecer e perceber um povo e a sua história.

Nenhum dos intervenientes foi capaz de terminar a sua intervenção sem antes recordar o nome de Manuel António Pina, escritor e jornalista português, presença assídua nas anteriores edições do Correntes d’Escritas, que faleceu em 2012.

Outros acontecimentos

Para além da sessão oficial de abertura do encontro, esta quinta-feira também se inaugurou a exposição “As palavras em liberdade na coleção de E.M. de Melo e Castro”, em colaboração com a Fundação de Serralves. Realizou-se a conferência de abertura “A Língua e o Saber”, na figura de Adriano Moreira, o lançamento de alguns livros, conversas entre autores, leituras e ainda a exibição do documentário “Autobiografia: um filme sobre Mário Cesariny”. Paralelamente ao evento esteve montada uma pequena Feira do Livro.

Palavras não são correntes de ninguém

A primeira mesa do Correntes d’Escritas – “Pensamentos não são correntes de ninguém” -, contou com a presença de Antonio Gamoneda, Eduardo Lourenço, João de Melo, Lídia Jorge e Ungulani Ba Ka Khosa. José Carlos Vasconcelos moderou o tema, que deu espaço para diferentes interpretações por parte dos intervenientes. João de Melo enfatizou a crise que se vive em Portugal, um país onde “nada acontece” e onde a felicidade já não tem lugar. Num tom sério e desiludido utiliza as palavras de Fernando Pessoa aplicando-as ao Portugal de hoje em dia: “Vão-se os homens desta terra que em tudo deixou de valer a pena quando a sua alma ficou pequena”.

Seguiu-se Ungulani Ba Ka Khosa, escritor moçambicano que, através da história da sua vida literária, concluiu que, ao contrário das ciências exatas, as letras e as artes não morrem, renovam-se e progridem, “cada texto nosso tem a marca de um texto anterior. Em literatura, o passado, as obras que antecedem a nossa, não morrem nunca”.

De forma a aproximar-se do leitor, Lídia Jorge falou de algumas experiências da sua vida e em como um escritor tem de se dar ao seu “cérebro louco” e deixar a lucidez um pouco de lado. É necessário escrever com “todas as raivas e fúrias que a vida vai dando”.

Também Eduardo Lourenço deu o seu testemunho, acabando por discordar com alguns pontos que João de Melo referiu. Nega que haja uma crise literária e afirma que esta geração está a deixar grandes autores e muitas marcas no mundo da literatura, afinal “a literatura serve para remediar na medida do possível as feridas da vida”, conclui.

Chegou, então, a vez de Antonio Gamoneda, poeta espanhol e vencedor do Prémio Cervantes em 2006, que exaltou a importância da poesia, a sua história e sustentação. Por entre o impensado, o natural e o primitivo, a palavra poética é antes sensível do que inteligível. Fundamentada no ritmo e nunca na palavra ornamentada, a poesia é indissociável de uma experiência mística que lhe confere um “poder subversivo e libertador”, conclui o autor.

Com ou sem crise literária, com ou sem correntes a puxar para terra, Maria Teresa Horta, em conversa com o JPN, deixa um apelo para que os jovens escritores oiçam as vozes do passado e utilizem a literatura para formarem a sua identidade literária, já que “o caminho se faz caminhando”. Mas, afinal, qual é o truque para se ser poeta? Maria Teresa Horta responde de forma simples: “Sem sonho não se escreve, sem sonho não se é poeta”.