Para Bruno Neves, a noite de 24 de abril era igual a tantas outras. Os trabalhos de fotógrafo em casamentos ocupavam-lhe o fim de semana. O descanso era adiado para a semana e, à noite, juntava-se com alguns amigos. Nessa noite, o caminho de regresso a casa foi diferente. “Ao chegar ao Bonfim vejo os militares todos no chão a patinhar e fiquei desconfiado”. Parou o carro e levou consigo a credencial de colaborador no jornal “A Capital”.

A sua curiosidade esbarrou na resposta pronta de um dos militares: “Meu amigo, vá-se embora, não é nada consigo, deixe-nos trabalhar”. Insistiu, dizendo que era jornalista. A resposta que se seguiu não precisou de chegar ao fim para fazer estremecer todas as partes do corpo: “Não sei se se recorda daquilo que se deu nas Caldas da Rainha”.

A hora da liberdade

A recordação da tentativa falhada do golpe fê-lo perceber que se aproximava a revolução. Desejou sorte aos militares e correu para casa. “Nem consegui meter a chave na fechadura. Não entrava! Comecei a bater à porta, nunca na vida me deu uma reação nervosa. Só dizia que agora é que ia ser, era agora!”. Disse à mulher para não sair de casa e pediu-lhe que os filhos ficassem com ela. De seguida, ligou à origem da sua ânsia pela revolução e ao responsável pela paixão da fotografia, o pai.

Bruno Neves e o pai eram responsáveis por uma das lojas de fotografia mais requisitadas do país. Na zona norte, todos os casamentos e batizados queriam os Neves a fotografar. A liberdade e a fotografia são dois conceitos indissociáveis para Bruno. O dia em que o pai comprou a sua primeira máquina foi o mote para todos os flashes da sua vida: “O meu pai não era revolucionário, foi preso por causa de uma porcaria de uma máquina que tinha comprado a um polaco. Eles julgavam que ele que era polaco, queriam que ele falasse polaco! Coitado, mandaram-no embora seis dias depois sem saber por que é que esteve preso”.

Naquela noite, onde a fechadura foi pequena demais, Bruno sabia o que tinha de fazer: “Esta é que vai ser a reportagem do Bruno Neves!”. Foi à loja e recolheu máquinas fotográficas, lentes e todo o material de filme. Só voltou a casa três dias depois.

Três loucos dias

Ainda a noite era escura e Bruno Neves já saíra à rua para fotografar a liberdade. Acompanhou a ocupação da rádio e da televisão e captou as movimentações militares que disseminavam pela cidade. Mas foi perto de casa, na Rua do Heroísmo, que esteve grande parte do tempo. Quando chegou à antiga sede da PIDE estavam meia dúzia de pessoas. Estranhou. Mas assim que a informação se espalhou, o largo encheu-se. Os resistentes antifascistas e os antigos presos voltavam a um lugar que, para muitos, foi de horrores. Uns vinham sedentos de vingança, outros com a vontade de saudar a liberdade.

O desertar do medo

“As pessoas, que alguns nem sabiam quem eram, diziam que tinham estado ali presas sem saber porquê e eu só pensava que era tal e qual como aconteceu ao meu pai”. Sem saber, naqueles dias, Bruno Neves tirava o seu maior autorretrato. Não era diferente daqueles que encheram, com euforia, as ruas do Porto. Natural da Sé, habitou-se a ver a pobreza e a miséria num país mergulhado na ditadura. O pai tinha sido vítima da repressão da polícia política que instaurava o medo. A liberdade foi aquela ideia inquieta que lhe foi preenchendo a mente e, naquele dia, a fotografia foi o seu ato de libertação.

Salgueiro Maia: o rosto da liberdade

Alfredo Cunha soube da revolução ao som dos “The Doors”. Enquanto ouvia “Riders On The Storm”, a mãe interrompia-o para lhe dizer que estava a haver um movimento. Logo depois, o chefe de redação do jornal “Século”, onde trabalhava, ligava-lhe. Antes das sete da manhã já fotografava. No dia 25 de abril, Lisboa foi pequena. Começou pelo Cais de Sodré, um dos locais mais emblemáticos da cidade, acompanhou as movimentações militares e as manifestações populares pelas ruas da capital, que culminaram na Rua António Maria Cardoso, onde ficava a antiga sede da PIDE.

Mas foi no Terreiro do Paço que tirou a foto mais marcante: o rosto de Salgueiro Maia. “Esta foto é feita após uma conferência de imprensa que ele deu, à qual eu cheguei atrasado, e ele concedeu-me um momento mais para eu fotografar”. Para Alfredo, este é o retrato do seu 25 de abril: “É o meu Che Guevara, a minha fotografia. O meu 25 de Abril está representado nesta foto”. Por entre as mais de 400 fotografias que tirou, esta ficou, durante muito tempo, esquecida: “Foi rejeitada no início, foi tida como uma foto estática, sem qualquer interesse, e é recuperada 20 anos depois pelo jornal Público, que a publica em duas páginas”.

O sonho ali ao pé

Gastou cerca de 40 filmes, mas sente que poderia ter gasto tantos mais. “Ficaram milhares de fotos por tirar. Eu, hoje, vendo fotos de grandes fotógrafos que estiveram lá, há tanta foto que eu gostava de ter feito e não fiz, mas eu era um fotógrafo com 20 anos, que obedecia a ordens e tinha a minha visão dos acontecimentos, e fiz aquilo que me foi possível. Este é o meu 25 de abril, é a minha versão”. Um 25 de abril seu que o é cada vez mais. “Cada vez mais estou perto delas. À medida que o tempo passa aproximo-me mais delas”.

Bruno Neves também não esquece aqueles dias. Não se lembra de ver o seu Porto tão feliz: “Esta cidade pode ter as melhores manifestações culturais, mas como o dia 25 e 26 de abril, ou o 1 de maio, nunca mais. Eu tenho uma fotografia, na Avenida dos Aliados, que dá impressão de que a cidade estava toda lá. A alegria que este povo teve nessa altura…”. Um desabafo que recorda outros tempos, mas que não esquece a luta constante: “Enquanto eu for vivo, a minha máquina está sempre a ir para os sítios onde as pessoas não querem ir, para os acordar, mais nada! E nisso ainda me sinto vivo e é por isso que ainda acredito na liberdade”.

Bruno Neves e Alfredo Cunha saíram à rua e ajudaram a criar as memórias do tempo em que as portas se abriram à liberdade. Por trás de cada foto mora um fotógrafo que registou a liberdade. Mas, mais do que isso, moram fotógrafos que a ajudaram a perpetuar.