A Guerra Colonial era um conflito inevitável?

A Guerra Colonial veio como consequência da II Guerra Mundial. E é bom não pensar que foi por os países que dominavam o Império Euromundista, subitamente, serem convertidos por uma iluminação. Eles perderam, na Guerra, as capacidades de hegemonia. E essa desmobilização foi penosa para todos eles, ao contrário do que muitas vezes se afirma, para comparar com o excesso português. Por exemplo a independência indiana, separação do Paquistão, deve ter custado uns 400 a 500 mil mortos. A desmobilização da França, no caso da Argélia, ou o caso do futuro Vietname, onde o seu exército foi dizimado, também é exemplar. De maneira que todos sofreram e Portugal também, na altura, a Guerra Colonial, que demorou muito tempo. A Carta das Nações Unidas dizia que, enquanto tivéssemos 1/3 dos votos a nosso favor, não podíamos ser condenados por não começar o processo da descolonização. Só que eu, como tinha andado na boa escola primária da República, tinha aprendido a fazer contas de somar, fiz a conta aos países que iam entrando e percebi que, em 1960/61, perdíamos o terço que nos protegia. Nesse momento, a descolonização dos outros tinha que nos atingir, o sacrifício do país era uma certeza enorme. E eu escrevi: “Acaba nesse ano. As vitórias diplomáticas acabam em 1960 ou 61, e, nessa altura, a luta será no terreno”.

Nessa altura, foi convidado para fazer parte dos governos de Salazar, como secretário de Estado e ministro. O que é que o fez aproximar-se do regime? Como é que surgiu o convite?

Bom, eu, como era professor, já tinha publicado várias críticas àquilo que se passava no mundo de trabalho e tenho o hábito de escrever e publicar as lições, para não serem secretas, e foi aí que eu fui chamado pelo almirante Lopes Alves, que era o ministro do Ultramar, e que me disse: “O presidente do Conselho diz-me que quer falar consigo”. Perguntei porquê e ele disse: “Não sei”. Ele sabia, mas disse que não sabia. O almirante estava gravemente doente. Eu lá fui ao presidente do Conselho e o presidente do Conselho disse-me que eu tinha feito várias críticas à administração colonial nos relatórios das Nações Unidas, mas que tinha acertado nelas. Convidou-me, ainda, para fazer as reformas que eu defendia. E eu disse-lhe o seguinte: “O senhor presidente não é o único português que acha que os interesses do país estão acima das suas questões pessoais. E se as minhas reformas são para aprovar, talvez ainda se vá a tempo e, em todo o caso, eu quero saber quem é que os apoia, porque, como eu não pertenço a nenhuma organização política, quem é que apoia?”. E ele disse: “Apoio eu”. E eu disse: “Não me chega. Eu vou reunir os professores do meu instituto. Se eles me apoiarem, eu conto com uma pequena equipa. Se eles me disserem ‘A gente não se mete nisso’, eu tenho que dizer que não”. Eu reuni-os, puseram-se todos à disposição e eu estou-lhes gratíssimo, porque sem isso eu não tinha conseguido.

Teve nas suas mãos uma das pastas mais complicadas: a do Ultramar…

Mas fiz algumas reformas que eu considero que, apesar de, talvez, tardias, foram históricas…

Entre as quais a revogação do estatuto de indígena?

Exatamente. Quem revogou a escravatura neste país foi o Marquês de Pombal, quem revogou a escravatura nas colónias foi o Marquês de Sá da Bandeira, quem revogou o indigenato, o trabalho forçado e as culturas obrigatórias, fui eu. Na altura elogiaram-me. Achavam que o código de trabalho que eu publiquei era o mais avançado da África e que tudo estava a ser feito, realmente, com autenticidade. Isso foi absolutamente aceite.

Mas considera que o a revogação do indigenato marca o princípio da descolonização?

Sim, a base de tudo foi a revogação dos estatutos indígenas, porque, para mim, é o ponto final desta evolução que começa com a escravatura aqui e com a escravatura lá. Levei algum tempo a convencer, como é natural, mas, finalmente, assinou-se o decreto. É um decreto que eu acho que tem uma coisa interessante. Tem um prefácio grande, que eu escrevi, e só tem um artigo, um artigo único, a revogar os estatutos indígenas. Um ministro do Ultramar, quando estava no Ultramar, tinha poderes legislativos, executivos e até judiciais! Poderes totais. E isso mostra o que era a essência do regime.

Acha que teria sido impossível chegar à democracia sem a descolonização?

Não houve ninguém que implantasse a democracia antes da descolonização. A Inglaterra, mesmo sendo uma das pátrias da democracia, nos territórios ultramarinos tinha um vice-rei, um governador, etc.. Mas principalmente nos países africanos ou orientais, o povoamento branco era outra história. Quando ele (Salazar) assinou o decreto, eu disse-lhe o seguinte: “Senhor presidente, isto não altera a Constituição, mas altera a estrutura social do país. Acho que era bom que isto fosse a Conselho de Ministros”. E ele respondeu-me: “Tem toda a razão. Mas com dois já é conselho!”.

Como é que aconteceu o seu afastamento do cargo?

Mas valeu a pena essa aventura?

As Ciências Sociais e a vida académica foram o caminho natural depois de sair do Governo?

Exatamente.

Mas, mais tarde, já em democracia, voltou à política…

Sim, estive depois no Parlamento. Eu fui saneado de Portugal e estive dois anos no Brasil, a dar aulas na Católica, que me convidaram. Eu organizei lá um mestrado sobre o mundo em mudança e o Instituto de Relações Internacionais, e depois voltei. Quando voltei, a democracia cristã estava a começar com o CDS. E o doutor Freitas do Amaral e o engenheiro Amaro da Costa foram ter comigo. E disseram que “a gente tem que reforçar esta democracia cristã” – eu senti que era tratado como se fosse o Papa. “Nós precisamos que intervenha”. Veio outra vez a minha consciência em relação ao país. Quem estava a fazer a Europa eram os partidos da democracia cristã e eu conhecia muitos que eram deputados alemães, italianos, etc., que também pertenciam àquele movimento, e acabei por dizer que sim, pronto. E estive lá uma porção de anos e no dia que eu disse que ia sair tive uma manifestação satisfatória para os orgulhos das pessoas. Para mim, julgo que o serviço não foi mau. Apesar da representação diplomática, parlamentar, que era muito pequena, mas era um grupo muito competente, muitíssimo competente!

A revolução de 25 de abril, que viria a pôr fim ao Estado Novo, surpreendeu-o, de alguma forma?

Não. Eu não pertencia a nenhum partido, não tinha nenhuma afinidade política, mas o 25 de abril não foi, para mim, uma surpresa, porque se nós estudamos Ciência Política é preciso não ser surpreendido completamente por estas coisas. Não tinha noção da composição nem de quem estava à frente, mas não me surpreendeu.

40 anos depois, o 25 de abril cumpriu-se?

Já referiu que o país é uma das suas principais preocupações. Quarenta anos depois do 25 de abril, como é que vê o país?

Há um problema da Europa. A meu ver, as Nações Unidas tiveram um embate com os factos. A ordem que vigorou foi a dos pactos militares. NATO e Varsóvia sobrepuseram-se às Nações Unidas. E quando isso aconteceu, a solidariedade ocidental foi muito grande, mas, depois que caiu o muro de Berlim, o Ocidente caiu no “neoriquismo”. Escrevi um livro, que se chama “O Estado Exíguo”. O Estado português gastou mais do que os recursos que tem, ficando, portanto, exíguo. Depois, o Estado enveredou na política europeia. Atualmente, o Tratado de Lisboa está praticamente em pousio, porque quem manda é a senhora Merkel. E eu percebo a senhora Merkel… Não tenho documentos, é só a minha interpretação, mas a senhora Merkel tem um grande sentido: ressuscitou o grande sentido da visão prussiana da grandeza da Alemanha. E é preciso ver que ela viveu a sua juventude governada por estrangeiros que invadiram o país, numa ofensa muito grande à dignidade. Mas quando cai o muro e vem para o lado de cá, vem para um sítio também governado por estrangeiros. Ela deve sentir um grande orgulho em restaurar o seu país e dar-lhe uma proeminência. Eu não conheço discursos, por exemplo, onde ela agradeça ao muro. A verdade é que a pouco e pouco ela aparece como que a líder da Europa, e essa liderança é assente no neoliberalismo repressivo.

É esse “neoliberalismo repressivo” que se verifica hoje em Portugal?

Sim, e vê-se nos impostos, no Estado Social – que tinha avançado imenso. As pessoas que aceitam a democracia cristã não podem aceitar o fim do Estado Social! O Estado social, em Portugal, encara-se como “na medida do possível”. Eles dizem: “Não temos dinheiro”. “Eu não lhe estou a perguntar se tem dinheiro, estou-lhe a perguntar se tem princípios”. Deviam aplicar-se os princípios de acordo com as nossas possibilidades. Mas não, aqui aumentam os impostos, as reformas é o que se sabe e, sobretudo, surgem medidas que atingem a identidade nacional, que é a comunidade dos afetos. Pôr funcionários contra empregados privados, pôr velhos contra novos, pôr distribuição de riqueza com desigualdades crescentes… Tudo isso atenta contra os tais sentimentos de afeto que estão na base da identidade nacional.

E o futuro? A liberdade e a democracia estão asseguradas ou podem estar em perigo?

O patriarca de Lisboa publicou um livro, há poucos dias, sobre a nova evangelização, e disse de Portugal: “A terra que nos calhou ou onde encalhámos”. E o primeiro problema que se me aparece é sempre este: o que é que fazemos com esta terra que nos calhou ou onde encalhámos? E, a partir daí, se lerem as coisas que eu tenho escrito e a razão por que, por exemplo, estou hoje no Porto com sacrifício, continua a ser esse problema que, para mim, é prioritário: o que é que se faz com o país em que eu nasci? Porque tenho uma noção muito firme de que exprimo da seguinte maneira: nenhum de nós escolhe a terra onde nasce, mas decidir ficar é um ato de amor. Uma nação é uma comunidade de afetos e as políticas que ferem as comunidades de afetos são extremamente prejudiciais para o país.