Na obra “1984”, um clássico da literatura mundial, George Orwell exponencia o rasto implacável do totalitarismo. Mas o pormenor que coloca o livro como uma das maiores obras literárias da História é a acutilante observação de que a repressão pode iniciar a pior das censuras: a auto-censura. O “crime do pensamento” é a vitória do medo. O momento em que nos tornamos a nossa própria opressão. No país da ditadura foi muitas vezes assim.

Para Paulo Teixeira de Sousa, a opção só podia ser resistir. “É, como o meu pai dizia, uma questão de obrigação intelectual. É obrigação intelectual se pensas que tens de fazer alguma coisa contra o que está mal”. Herdou do pai a inquietação. Antes de nascer, nos anos 40, os cárceres da PIDE albergaram, durante cerca de três meses, um dos rostos mais ativos na oposição ao fascismo na zona do Porto: o seu progenitor. À mesa, a situação política sempre foi conversa, mas os relatos da prisão nunca foram ouvidos: “Eu imagino que a coisa não tenha sido muito fácil, porque, se ele esteve lá três ou quatro meses, não era para fazer festinhas”.

Resistir: a obrigação intelectual

O pai sempre foi a grande influência. Quando era pequeno ouviu, numa conversa de família, que o pai tinha estado preso. Sentiu-se filho de um herói. Cresceu a ouvir falar do que se passava no país e a consciência, de forma natural, despertou. Quando chegou ao liceu envolveu-se no movimento académico, um dos meios mais ativos na luta contra o fascismo. Tornou-se presença habitual nas manifestações e distribuía, pelas ruas, propaganda a favor da democracia. Tinha um envolvimento tão ativo, que um homem, detido pela distribuição de papéis a favor da oposição democrática, o denunciou como fornecedor do material: “Podia ter sido, mas, por acaso, não tinha sido eu que lhos tinha dado”.

Na altura integrava o Movimento de Oposição Democrática e foi a primeira vez que foi preso: “Foram-me buscar a casa a um sábado de manhã e andaram a revistar a casa. No fim disseram que me iam levar”. Esteve dois dias preso. As celas ficavam num dos andares de baixo, mas para ir para a sala dos interrogatórios era necessário subir umas escadas: “Eu sou hipotenso, deu-me uma tontura, tropecei e caí nas escadas. O tipo que ia comigo, que era o porteiro, deu-me um pontapé para me levantar”. Foi o único ato de violência de que foi vítima. Quando se abriram as portas para o interrogatório reconheceu o inspetor da PIDE: “A mulher dele tinha sido minha professora e eu entrei logo a dizer-lhe isso”.

Paulo Teixeira de Sousa – sentir a liberdade

Como a acusação não era muito grave acabou libertado. Contudo, a sua obrigação intelectual levá-lo-ia mais duas vezes à prisão. Em 1972, recolhia assinaturas para uma manifestação junto a uma fábrica, quando apareceu a polícia. Quando viu que uma das companheiras não conseguiria fugir deixou-se também prender. Os pequenos delitos que cometia deixavam-no longe das formas mais violentas de tortura. A Fernando, não.

Os amargos tormentos da tortura

Na manhã do dia 11 de janeiro de 1966, o despertar foi diferente. Antes das sete da manhã, um estrondo ecoou pela casa e acordou a família: “A PIDE bateu à porta, parecia que teria sido com os pés, porque foi um estrondo tão grande. Disseram que vinham procurar algumas informações sobre o que é que eu fazia na política. Eu fiquei espantado e tive que me vestir diante daqueles indivíduos que, moralmente, eram muito medíocres”. Aquele devia ter sido um dia de festa. Era o aniversário da irmã de Fernando. Os agentes da PIDE prometeram que a visita à Rua do Heroísmo, onde ficava a sede da polícia política, seria só para responder a umas perguntas. Durou seis meses.

Fernando Morais – As torturas do sono e da estátua

O despertar da consciência

A atividade política de Fernando Morais começou desde cedo. Originário de uma família pobre, sempre viu, no mundo, a injustiça. A semente plantava-se no pensamento, era regada pelo interesse pelas artes despertado na escola e o crescimento completado pelos livros, alguns deles proibidos, que preenchiam as suas cómodas. No fim, brotou uma flor inquieta que não era a única do jardim. Fernando foi sócio do Cineclube, do Teatro Experimental do Porto e do Círculo Ferrão Moreira. Conviveu com os círculos intelectuais da cidade e, através do teatro e do cinema, começaram os debates que desaguavam, indiretamente, na porta grande: a política.

Aos 19 anos já tinha publicado um livro e, apesar de não ser membro do Partido Comunista, distribuía o jornal “Avante”. Todo o seu percurso chamou a atenção da PIDE, que o colocou sobre vigia. Quando o estrondo ecoou na sua pequena casa de bairro, em Vila Nova de Gaia, não sabia como tinha sido apanhado. Soube-o no interrogatório: “Nós sabemos perfeitamente que escreveste uma carta para Lisboa a uma rapariga que é comunista e queremos saber quem é o teu contacto no partido”. Não quis ser “um bufo” e negou a existência de tal contacto. Seguiram-se murros e pontapés. De tempo a tempo, a pergunta voltava e prometiam-lhe a saída imediata, caso desse algum nome. “Eu a ver o que é que ele queria, porque era muito mais esperto do que ele”. Perante a continuidade da negação, seguiram-se mais murros e pontapés.

O tempo a tender para o infinito

O interrogatório era a primeira das fases na prisão. Muitas vezes carregado de violência e tortura, servia para recolher informações sobre outros nomes, para que se procedesse a uma nova vaga de detenções. Mas Fernando tinha sido traído pela própria privacidade. A sua correspondência havia sido violada. Não havia direitos pessoais maiores do que os interesses do regime. Numa das visitas realizadas pela mãe, passou um bilhete a pedir que o seu amigo Vilaça fugisse. Mas, apesar dos esforços, a sua prisão foi inevitável e, na segunda fase da prisão, partilharam cela.

“Quando se vai lá para baixo é como se tivéssemos sido postos em liberdade, porque ali não havia ninguém. As pessoas que traziam a comida só vinham de tantas em tantas horas e traziam o pequeno-almoço por um postigo pequeno”. Nos cubículos de pequenos metros quadrados, preenchidos por beliches, só havia espaço para sonhar com a liberdade. Sabia-se que, por lei, ao fim de seis meses, era necessário apresentar provas concretas que justificassem a prisão, mas, ao fim de alguns dias, o tempo era um corpo indefinido e temia-se a prisão do momento.

Fernando Morais – Sonhar com a fuga

O último preso político

Foi numa dessas celas que Jorge Carvalho, mais conhecido por Pisco, se habituou a ver, da janela, os vermelhos e amarelos de um lado para o outro. As cores eram as únicas formas familiares que reconhecia. Mais do que os rostos, fechados pela proximidade à sede da PIDE, era a coloração da roupa que lhe ficava na memória. Até na prisão não havia lugar para os cinzentismos. Foi presença assídua nos calabouços da Rua do Heroísmo. Pertenceu à cédula comunista de Matosinhos, conhecida como a segunda Juventude do Barreiro, a mais ativa a nível nacional.

Jorge Carvalho (Pisco) – As marcas da prisão

Pisco foi preso várias vezes pela presença em manifestações contra o regime e contra o estilo de vida vigente. Mas é o início da sua luta que não lhe escapa da memória. “A minha estreia aqui dá-se depois de um funeral de um amigo meu que foi para a guerra e morreu lá. Fizemos um funeral em Matosinhos com muita gente, muita PIDE, muita polícia, mas conseguimos levar a nossa a melhor e não permitimos que os soldados pegassem no caixão. Quem pegou no caixão fomos nós, amigos. Fiz um discurso no cemitério de Sendim, em Matosinhos, e a PIDE tentou-me prender, mas tinha um carro à porta do cemitério e fugi para Braga”. Fez da resistência vida e a atividade política constante tornava inevitável as celas da antiga sede da PIDE.

A hora esperada

Enfrentou, por várias vezes, a tortura e passou meses encarcerado a pensar na família angustiada por mais uma prisão. Naqueles dias de cárcere, começou a fumar. Os pensamentos mais atrozes atravessavam-se no seu caminho, mas, quando saía, voltava aos convívios, onde tocavam as músicas de intervenção, à distribuição do “Avante”, que recebia em, caixas de camisa, na Praça da República. Habitou-se tanto à luta que pensou estar a enlouquecer quando, da sua cela, ouviu os gritos de “Morte à PIDE e a quem a apoiar”.

Jorge Carvalho estava preso há mais de 20 dias e desde 23 de abril que notava umas estranhas movimentações. “A partir desse dia, sem explicação, cortaram-nos os jornais. Eles sabiam que qualquer coisa se estava a passar”. Na noite seguinte, sentiu um cheiro intenso a queimado: “Estavam já a destruir, naturalmente, papelada, porque a partir de 1973 não há relatórios. Já fui à Torre do Tombo e não aparece nada, portanto, eu não sou preso nenhum, porque não aparece nenhum arquivo meu. Tudo leva a crer que foi nessa noite que eles destruíram tudo”. Seguiram-se horas de agitação total, com passos apressados em diferentes direções, portas a abrir e a fechar e uma incerteza maior, quando um dos presos gritou que, pela janela, tinha visto, num jornal, que havia um golpe comandado pelo General Spínola.

Finalmente livres

A meio da manhã, o trinco da porta da cela abre-se. À frente de Jorge estava um soldado e, de imediato, pensou que não conseguiria mais fugir da guerra. O aparecimento de outro militar, conterrâneo seu que conhecia, esclareceu-o. Tinha chegado a hora.

Jorge Carvalho (Pisco) – Povo e militares: enfim a revolução

Pisco foi o último preso político a pisar a sede da PIDE no Porto. Ali, na Rua do Heroísmo, muitos resistiram. Outros sucumbiram às pressões e ao medo. Paulo, Fernando e Jorge ganharam, mas não naquele dia. O 25 de abril foi apenas a consagração da maior das revoluções iniciada há muito tempo: a da consciência. Em “1984”, Orwell escreveu que “Enquanto não tomarem consciência não se revoltarão, e enquanto não se revoltarem não poderão tomar consciência”. Mergulhado na opressão, muitas vezes, o medo falou mais alto. Mas houve quem, escondendo as mãos trémulas, não ousou calar-se.