Em 1962, aquele que muitos consideram a voz de abril, José Afonso – ou Zeca Afonso- compunha o seu primeiro álbum. Lançava, através da música, críticas ferozes ao poder e à forma como os mecanismos de repressão o perpetuavam. A palavra assumia-se de intervenção.

Escondida por metáforas e recursos linguísticos irónicos, a liberdade brotava nas entrelinhas. Naquela altura, estudante de Medicina em Coimbra, Rui Pato tocava nas sessões de fado e música coimbrã. Quando Zeca procurou um guitarrista para a gravação do primeiro disco, o seu nome surgiu.

“Só tive consciência do perigo e da importância de tudo aquilo que estávamos a fazer um ano depois de já estar com ele. Quando comecei, em 1962, não me tinha apercebido da importância de todas aquelas canções e daquilo que o futuro nos reservava”, recorda. Estava, sem saber, talvez pela aventura da idade, a entrar numa luta: “Era um combate contra a censura, o regime, os preconceitos e todos aqueles que achavam que era estranho que a música pudesse servir de arma”.

O despertar das consciências

Rui Pato: As noites de canções com Salgueiro Maia

Até aos anos 60, o nacional-cançonetismo preenchia as rádios e as lojas de discos. A intenção de despertar consciências levada a cabo por José Afonso abriria caminho a Adriano Correia de Oliveira e, mais tarde, a nomes como José Mário Branco, Francisco Fanhais e Sérgio Godinho. Rui Pato acompanhou, à guitarra, muitos desses nomes. Musicou muitos dos poemas trauteados por gerações, mas para si, a essência da intervenção está na palavra: “A escolha das palavras certas nunca saíram de mim, eu fui sempre o rapaz que acompanhava os cantores de intervenção”.

A censura

A liberdade, escondida entre versos, valeu-lhe a atenção da PIDE. Começou a ser vigiado, foi expulso da Universidade e obrigado a entrar para o serviço militar coercivo. “Era quase uma forma de guerrilha artística, e eu, como se poderia dizer, dei o peito às balas”, conta. Alguns lugares das plateias começaram a ser preenchidos por agentes da polícia política e a censura prévia tornou-se habitual.

Mais uma vez, no limbo entre expressão e da repressão, a liberdade lá se cantava: “Os espetáculos mais formais eram sujeitos a uma censura prévia, em que durante a tarde fazíamos um ensaio para os censores, mas nós muitas vezes aldrabávamos e escolhíamos coisas insignificantes à noite cantávamos as canções mais duras”.

Ao palco, além das guitarras e dos outros instrumentos, subia a indefinição. Outras vezes nem uma, nem outra. “Era uma tensão muito grande dentro da sala porque não sabíamos o que é que acontecia a seguir, e havia muitos espetáculos, que eram pura e simplesmente proibidos. Não nos deixavam cantar, não nos deixavam tocar”.

Aos mecanismos mais intensos de repressão, respondiam as requintadas ironias. A liberdade não era para o ouvido de todos. “Há relatos dos censores e até de agentes da Direção Geral dos Espetáculos, que estão na Torre do Tombo, que faziam relatos perfeitamente ridículos. Não percebiam muitas das coisas. Lembro-me de tocarmos os ‘Vampiros’, das primeiras vezes, e eles pensarem que estávamos a falar mesmo dos bichos”.

Liberdade: a fonte da criação

Um dos espetáculos mais memoráveis no período pré-revolução aconteceu no Coliseu de Lisboa. Pouco antes do 25 de abril, vários artistas subiam ao palco e cantavam músicas que a censura tinha aprovado. Zeca Afonso, disfarçando problemas da voz, evidenciava que tinha sido condicionado na escolha. O público, mais habituado às entrelinhas que os censores percebeu. Pela primeira vez, cantou-se o Grândola a uma só voz.

Naquele dia, José Jorge Letria foi uma das muitas vozes desse coro. À época era também cantor de intervenção, mas a palavra marcar-lhe-ia o percurso. Escritor e jornalista, sentiu na pele a censura mas era nos caminhos da perversão que encontrava a sua imaginação. A liberdade era uma estátua esculpida. “A linguagem era mais sofisticada, mais elaborada, não era necessariamente a mesma, e portanto, sendo diferente, acabava por dizer as coisas de uma maneira mais requintada e mais depurada”, explica.

A liberdade era a peça central. Para quem criava, para quem ouvia. “O êxito explica-se, penso eu, de uma maneira muito simples. Vivíamos num país onde não havia liberdade e grande parte daquilo que nós víamos, assistíamos e pressentíamos era completamente diferente daquilo que viria a ser depois”. Depois, a queda da ditadura. Ainda assim, novamente, a liberdade: “Quando a liberdade chega e chega o momento em que a maneira de dizer as coisas, e procurar a forma correta de as dizer, obviamente que era uma preocupação que nascia”.

A canção como arma

Manuel Freire: A repressão na arte

“As canções não fazem revoluções, mas ajudam-nas”. Para Manuel Freire a canção é assim: uma arma de pequeno calibre que fere mas não mata. Desde a candidatura de Humberto Delgado, em 1958, que despertara para o estado do país. A música, descobriu-a depois dos poetas. “A importância da palavra é fundamental, e para o tipo de música que eu faço ainda hoje, a música é só um veículo de suporte para as palavras. Torna a mensagem mais acessível, permite que as pessoas cantem essa mensagem, que interiorizem mais facilmente e que saiam de uma sala a trautear uma cantiga e acabam por tropeças nas palavras, às vezes sem querer”, diz.

Manuel Freire: A canção como veículo da mudança

A leitura plantou a consciência: “Quanto mais se lê, mais se aguça o nosso sentido crítico. Neste caso, autocrítico. Eu, lendo muito, sabia que não tinha talento nem habilidade para escrever tão bem como as coisas que lia”. Os poetas preencheram-lhe a consciência. A consciência fomentou o sonho. E, como nos versos do poema que tanto cantou, o sonho comandou a vida.

Ser artista em liberdade

A carreira de Pedro Abrunhosa fez-se, essencialmente, em liberdade. A inquietação começou ainda antes do 25 de abril quando, aos 13 anos, olhava em desassossego para o mundo. A música surgiu, mais tarde, como a sua cidade interior. “Para ser artista é preciso pensar. A liberdade é algo das muitas pétalas que a arte produz, é uma das pétalas e são infinitas”, afirma.

Pedro Abrunhosa: a arte é mais do que uma arma

Como flor que nasce, a criação precisa de espaço para brotar: “Os artistas dispensam a censura, não precisam da censura para criar. Nem precisam de inspiração! O que não dispensam é trabalho, e aí o artista, o cientista e o jornalista ou seja quem for, não consegue resolver nenhum problema se não se aplicar, se não trabalhar”. Para o cantor, os períodos mais prolíferos da arte foram os vividos em liberdade. Desde a Antiga Grécia ao Renascimento, a arte e a criação cresceram livres.

Em Portugal, antes da Revolução, a liberdade pairou na cabeça de Rui, José e Manuel. Não imaginam a expressão sem a intervenção. Desde abril que veem um decréscimo criativo. Quando, nas manifestações ou noutros protestos, escuta o seu amigo Zeca, Rui Pato não tem dúvidas sobre os motivos pelos quais se cantou: “Neste momento quando se canta o Grândola é para dizer que a liberdade de Abril não se cumpriu”.

Pedro Abrunhosa: a criação em liberdade

Para quem maturou em liberdade, como Pedro, ser livre é uma questão de todos os dias: “É uma questão individual, é uma questão social, é uma questão de compromisso com o futuro, mas é algo que é exercido todos os dias, no direito de responsabilidade”.

Liberdade rima com criatividade. Abraçam-se e coabitam no espectro da arte. Em momentos da história, fizeram-nos olhar para o que nos rodeia. Mais que isso, olhar-nos a nós. A única certeza dos tempos é que, na memória, não perduram os retratos do silêncio.