Um conceito renovado de cidadania

Pedro Vieira é fruto de uma geração diferente. Nascido em pleno “verão quente” de 1975, cresceu num período de maturação da democracia em que o 25 de abril estava fresco na memória de todos. Viu despoletar os primeiros avanços da revolução tecnológica e foi apanhado pela eclosão da Internet.

A crescente democratização do meio e o aumento da preponderância no acesso e distribuição da informação alteraram algumas das rotinas quotidianas. Em 2003, os blogues começavam a inundar a Internet. Eram um espaço de expressão de opiniões que alterava o espaço mediático. Todos tinham o direito ao seu “Speakers’ Corner”. Nesse ano, Pedro Vieira começa o “Agridoce“: “No início, toda a gente queria falar para a comunidade mais próxima de si, amigos que visitavam os próprios blogues, mas, de facto, havia ali um grande potencial, quer de descoberta de vozes novas quer de liberdade, porque nunca houve restrições”.

Em contraste com a repressão sentida décadas antes, Portugal abria-se a novas vozes. A participação cívica ganhava novas ferramentas e a cidadania ativa, exercida através pensamento crítico e interventivo, ficava a uma curta distância. A Pedro mudar-lhe-ia a vida: “Quando se começa a criar um pequeno público sentimos necessidade de alimentá-lo e de cumprir determinadas expectativas. Essa exposição, ainda que mínima, acabou por me levar a exercitar a escrita, a mostrar mais trabalho e levou-me ao que eu faço agora. Se não fosse realmente a explosão dos blogues, dificilmente teria a vida que tenho agora”.

Miguel Gonçalves Mendes – Arte e Liberdade

Pedro é, hoje, apresentador de televisão no Canal Q. A seu cargo tem o programa “Inferno”, um olhar humorístico sobre a atualidade. A utilização da sátira e de mecanismos irónicos e humorísticos servem para, de outra forma, olhar para a realidade que nos rodeia. Certo é que o comodismo não poderá vencer a inquietação: “Quantas mais ferramentas existirem, tanto melhor. Acho sempre vantajoso haver mais canais por onde nos expressarmos do que menos. Quanto mais pluralidade e plataformas, melhor”.

A arte como afirmação

Foi também o desassossego que encaminhou Miguel Gonçalves Mendes: “Na minha vida, a arte tem um lado muito terapêutico, no sentido em que me ajuda a colocar questões, me ajuda a procurar respostas que eu acho que são comuns a muita gente que me rodeia e nas quais as pessoas se reveem”. A realização sobressai como uma visão do mundo: “Eu, sobretudo no documentário, que é uma espécie de necessidade de registo ou de preservação da memória, é como se, de uma forma condensada, durante duas horas ou durante uma hora, estivesse a partilhar saber condensado com as pessoas”.

Miguel Gonçalves Mendes – Que futuro?

A câmara é a afirmação de uma vontade. A arte serve como o veículo da expressão e da interpretação. Sem liberdade, nenhuma delas poderia ser vivida: “A liberdade e a dignidade humana é algo que não só devia preocupar os artistas como todos os cidadãos. Infelizmente, estamos a viver num mundo em que muitas das conquistas que nós tínhamos atingido estão em franco processo de retrocesso e nós não estamos a fazer absolutamente nada em relação a isso”.

Miguel é um orgulhoso herdeiro da liberdade: “Eu sou fruto de uma família de classe média-baixa. O que me permitiu ser o que eu sou hoje foi a escola pública que estes atrasados mentais querem destruir. O que me permitiu poder fazer cinema foi o advento do vídeo, porque possibilitou que uma série de pessoas como eu, que não vêm de elites, tenham possibilidade física de fazer as suas criações”. Mas, tal como há 40 anos, o futuro é a maior das indefinições.

Dealema – 20 anos de responsabilidades

Música para intervir

A revolução não trouxe a perfeição. Os problemas não se esgotaram, apesar das preocupações terem mudado. A liberdade não se esgotou em nenhuma das gerações. Todas elas carregam, com os devidos amadurecimentos, as suas realidades. O inconformismo levou a que, há 20 anos, um grupo de adolescentes começasse a sua “rebelião contra o sistema”. Os Dealema são um dos coletivos de hip-hop com mais sucesso em Portugal. Ao longo das duas últimas décadas reuniram fãs, amadureceram as composições, mas o objetivo inicial permaneceu intacto:

Dealema – Música e Liberdade

“Foi do início que veio essa força, essa luta pela liberdade. Adoramos ver novas gerações com as nossas influências, porque, realmente, trata-se disso, aquela energia jovem. Claro que, agora, vemos as coisas de outra perspetiva. Não fazemos música para estar, se calhar, a intervir ou a mudar, porque isso já nós fazemos desde sempre”. O hip-hop é, na sua essência, uma música de emancipação. O caráter interventivo a apelar à mudança sempre marcou as letras dos Dealema: “Esta música está um bocado associada aos bairros, aos guetos urbanos, porque, realmente, é uma rebelião, e uma rebelião que, entretanto, passou a ficar instituída e em alguns certos casos passou a ser moda. Para nós, o objetivo é o da liberdade de expressão, de, na música, poderes ser livre, fazer o que quiseres”.

A importância da palavra

Ana Maria Pinto – Ser artista

A música foi também a liberdade de Ana Maria Pinto. Desde pequena que o sonho se plantou. Da música que ia ouvindo nos discos e na voz dos pais até à entrada no conservatório, o tempo voou. Procurou o estrangeiro para aprofundar os estudos: “Sete anos longe do país onde eu nasci cimentaram a minha identidade portuguesa. E foi precisamente por sentir essa identidade portuguesa que, depois, ao olhar para Portugal, soube as condições da Troika e senti uma ligação emocional muito forte ao que estava a acontecer, o que me deu impulso para expressar-me em liberdade”.

Tornou-se presença assídua nas manifestações e levou consigo o protesto mais eficaz, o canto lírico: “A palavra tem o poder de transformar, completamente. Se eu te digo uma palavra que te move interiormente, tu mudas. Se, enquanto cantora, tenho a oportunidade de ainda adicionar uma certa componente humana, ainda mais longe vou nessa transmissão”.

Draw – A experiência da liberdade

Espaço público: de todos e sobre todos

A transmissão de uma mensagem é sempre o objetivo de Frederico Soares, quando começa um graffiti: “Aproveitar a visibilidade da rua, da pintura a grande escala, no impacto que tem uma pintura numa parede, para passar realmente uma mensagem a quem observa”. Draw, como é conhecido no meio, gosta de olhar o espaço público como um espaço de intervenção por excelência. É nos espaços normais do quotidiano que se pode colocar o recetor em contacto com a obra. A mensagem chega a muitos.

Draw – Desenho de Salgueiro Maia

Numa arte, muitas vezes conotada com o vandalismo, o paradigma nem sempre foi fácil. Mas a liberdade mudou as mentalidades: “A liberdade de hoje em dia permite-nos ser convidados para projetos em cidades e eventos para poderes transpor para a parede a tua arte”. A street art torna-se parte do património das cidades e, 40 anos depois, é vista como um espaço de intervenção. Num local comum, a herança e a cultura são partilhadas. Quem passa, vê e revê-se. Os murais são um espelho da sociedade e uma emancipação da vida na mesma.

Na varanda de Draw está um cravo ao vento. Ali, despercebida, embora assinalada, está uma flor que não tarda murchará. Sozinho ao vento, será assim a liberdade?

O que é a liberdade?

Há 40 anos, abril abria portas que as gerações mais jovens continuam a querer deixar abertas. Para lá da porta não se vê o futuro. A indefinição atinge a geração dos filhos da liberdade. Mas há um património partilhado que não esconde idades ou tempos. A liberdade é hoje, como há quarenta anos, a mãe de todos os sonhos.