É viajante, escritor, surfista. Qual a hierarquia?

Depende da qualidade das ondas. Se estão boas, surfista em primeiro lugar. Depende de onde eu estou. Se estou em casa, viajante vai para último. Não sei… Vamos fazer um ex aequo, como se costuma dizer nas competições. Fica tudo em primeiro lugar.

Qual o papel da música, no meio de tudo isso?

Eu acho que as pessoas nascem com sensibilidades já pré-definidas. No meu caso, sou muito sensível à música. Por acaso tenho a sorte, como diz a canção do Caetano [Veloso], de saber tocar um instrumento. Mesmo que não soubesse, o meu pai, por exemplo, não sabe e também tem essa sensibilidade. Portanto, eu acho que herdei isso e, no meu caso, pensando nas outras artes como cinema, escultura ou pintura, definitivamente a música foi aquela arte que mais me captou a sensibilidade e, felizmente, ao ponto de eu a poder executar.

O Gonçalo usa a expressão “monocórdica” para definir a sua vida. Como é que uma pessoa que viaja tanto consegue definir a sua vida assim?

É claro que eu usei isso como uma provocação. Estava a brincar com a palavra e com as expectativas que o leitor tem do que eu penso ser a minha vida. Mas se pensarmos bem no que significam vinte anos de uma carreira, qualquer que ela seja, é muito tempo. E, ao longo de vinte anos, em termos profissionais, não fiz mais nada senão ser viajante. Estive sete meses como gestor de empresas, quando terminei a faculdade, para ter a certeza que não queria fazer aquilo no resto da vida. É nesse sentido que eu uso a expressão “monocórdica”.

“Se retirassem a viagem da minha vida, acho que não saberia o que poderia ser”

Os ingleses têm uma expressão que é “one trick pony“, ou seja, um cavalo que só sabe fazer um truque. Às vezes, eu sinto-me um bocado um “one trick pony“. Se retirassem a viagem da minha vida, acho que não saberia o que poderia ser. E, à medida que os anos vão passando, isso vai acentuando-se cada vez mais. Claro que, se fosse preciso, em termos financeiros, eu sabia fazer qualquer outra coisa, como qualquer ser humano, mas, neste momento, estou de tal maneira formatado para ser um viajante-escritor que, com alguma provocação, ironia e, ao mesmo tempo, preocupação, digo que a minha vida é muito monocórdica.

Para o Gonçalo, existe uma grande diferença entre “viajante” e “turista”?

Não acho que exista uma diferença entre turista e viajante. No livro “Um lugar dentro de nós”, o último capítulo é todo à volta dessa questão e eu acho que essa é uma falsa questão. Todos os viajantes, dentro da nossa categoria, são turistas. Acho que o viajante deixa de ser turista quando é camionista, embaixador ou comandante de um cargueiro. Hoje em dia é tão fácil viajar que todos os turistas são viajantes e todos os viajantes são turistas. Recuso entrar nesse género de separações, pois acho que é snobismo dos turistas que têm a possibilidade de estar mais tempo e poder comer baratas em relação aos outros.

Esquecendo a impossibilidade física, se pudesse ter reunidos num dia todos os seus micro-momentos de eleição, como seria esse dia?

Bem, era certamente um dia para eu não dormir, ou seja, um dia em que estivesse as 24 horas acordado para aproveitar ao máximo. De facto, uma pessoa, quando pensa que aquelas oito horas, das 24, passa a dormir…um terço da vida aparantemente inutilizável. Acho que precisava de escrever um livro para responder a essa pergunta. É demasiado difícil. Pode ser uma sugestão para um livro. É que nem sei por onde começar.

“Não acho que exista uma diferença entre turista e viajante”

Certamente incluía lá ondas que fiz, incluía lá amizades, conversas ao fim da tarde, incluía lá pessoas que acompanhei à viola. Certamente esses momentos mágicos. Se calhar não perdia tempo com transportes. Mas, se calhar, incluía a navegação em cargueiro do Oceano Pacífico, aqueles momentos em que eu esperava o fim da tarde, que nos trópicos é muito breve, e ia sentar-me na proa do cargueiro e via aquelas nuvens que só em mar alto e só nas latitudes baixas podem acontecer… Sei lá.

Em “Encontros marcados”, o Gonçalo diz que acredita no destino, mas só depois de ter acontecido. O que é que isso quer dizer, exatamente?

É uma provocação, uma brincadeira. É como aquela frase que se ouve às vezes nos jogos desportivos “prognósticos só no fim do jogo”. Ou seja, depois das coisas acontecerem é muito fácil prevê-las e é nesse sentido que digo que acredito no destino. Só acredito nele depois das coisas terem acontecido e olho para trás à procura de uma razão e a razão é aquela que me interessa. Isto significa que o destino sou eu que o estou a manipular de uma forma literária, para, com isso, construir uma história. Dizer mais que isso, que acredito no destino do que está para vir, é abusivo.