O número ninguém sabe ao certo. Mas estima-se que fossem mais de 600. As rádios piratas não deixaram Portugal de fora da lista de países que viram o fenómeno crescer entre fronteiras.

Um pouco mais tarde do que no resto da Europa – por volta dos anos 70 -, os curiosos, vindos de todos os campos profissionais, põem mãos à obra e as rádios piratas vão-se alargando por um Portugal que precisava de dar voz e representação a um povo.

Luís Bonixe, investigador nesta área, explica como se iniciou o processo: “Começa com pequenas experiências de alguns curiosos que montam pequenos emissores pouco sofisticados e tinham que ser pouco sofisticados porque eram rádios ilegais. Tinha que haver uma facilidade em montar e desmontar para fugir aos serviços de fiscalização”.

Quando eram descobertos, através da identificação dos emissores radiofónicos, os projetos eram encerrados. Montar uma rádio era arriscado, mas não era impossível: “A partir de uma determinada altura passou a ser difícil aos próprios serviços captar e mandar encerrar a quantidade de projetos que foram surgindo um pouco por todo o país”, afirma Bonixe.

“Houve um desejo: que os cidadãos passassem a ter uma voz que não tinham na rádio nacional” – Luís Bonixe

Mas como funcionavam as rádios piratas? Inicialmente, os meios técnicos não eram muitos, falavam-se de rádios em vãos de escada, quartos-de-banho, sótãos, cozinhas, qualquer divisão disponível que permitisse lançar para o ar a emissão. Mas a falta de meios técnicos não durou para sempre. Os piratas passaram de rádios em vãos de escada para estúdios.

Luís Bonixe divide o processo em dois momentos: “No primeiro existe, sobretudo, uma tentativa de afirmação de um movimento, ou seja, de dizer ‘Nós estamos cá’. Mas as rádios eram muito incipientes, funcionavam com aparelhos muito rudimentares. Há, depois, um período em que se começa a ter a sensação de que as rádios poderiam vir a ser legalizadas e aí já tinham outra dimensão, continuavam a ser piratas, mas com outra dimensão ao nível tecnológico e ao nível das estruturas”.

No entanto, o objetivo não era só passar música ou fazer programas radiofónicos. As rádios piratas tinham uma dimensão interventiva: “Houve um desejo: que os cidadãos passassem a ter uma voz que não tinham na rádio nacional. Havia um desejo de estar representado nos media, através de ter o seu programa, o seu espaço informativo, até do ponto de vista cultural”, acrescenta Bonixe.

Luís Humberto Marcos foi representante de Portugal no Congresso Internacional de Rádios Livres de 1987, apesar de nunca ter estado envolvido numa rádio pirata. Para ele, as rádios livres foram a oportunidade perfeita para “ultrapassar as limitações que tinham existido no 25 de abril”.

Ligado ao jornalismo, Luís Humberto afirma que, na altura, sentia-se que o 25 de abril estava a ficar para trás: “Vivia-se alguma compressão daquilo que tinha sido a revolução e, portanto, as rádios livres surgem como uma oportunidade técnica de expandir aquilo que era o sentido de liberdade que jovens e muitas associações cooperativas queriam expressar”.

“As rádios locais, ainda que com todos os problemas inerentes, foram um laboratório para muitos jornalistas da atualidade” – Mário Nicolau

Mário Nicolau, jornalista, apaixonou-se pela rádio aos oito anos, ao ler um livro ilustrado da BBC. Do papel para a realidade foi “um instantinho” e Mário acabou por participar em três rádios piratas: a Rádio Actividade, de Coimbra, a Rádio Província, em Anadia, que fundou com João Fernando Ramos, e ainda a Rádio Bairrada, em Sangalhos. “Tínhamos algum jeito, alguma vontade e queríamos fazer coisas”, conta Mário. As histórias são muitas, desde ter o emissor de rádio numa carrinha para ser mais fácil fugir aos serviços de fiscalização a colocá-lo no alto da Serra do Caramulo e ficar horas a vigiá-lo.

Mas, para além das aventuras, as rádios foram um passo importante para a futura carreira de jornalista: “As rádios locais, ainda que com todos os problemas inerentes, foram um laboratório para muitos jornalistas da atualidade”, diz.

Rádio Placard, Rádio Satélite e Rádio Comercial Norte foram as três rádios piratas onde Isabel Guimarães, antiga jornalista, trabalhou. Depois de assistir a uma entrevista de um amigo com Carlos Magno, na Rádio Comercial Norte, chegou à conclusão que “era profissão que não queria”. Mas, em menos de um ano, estava a trabalhar na Rádio Placard, onde o seu papel “era pôr discos, apresentar programas e inventar nomes de programas”.

Para Isabel, as rádios piratas tinham um importante papel em formar para o jornalismo. “Eu sei que, naquela altura, havia necessidade de educar os mais jovens para aquilo que era a rádio para além de pôr ‘disquinhos'”, explica Isabel. “Lembro-me que haviam os antigos locutores, os grandes locutores, os grandes mestres, que nós, quando éramos pequeninos, ouvíamos na rádio e era todo um fascínio. E nós, os mais jovens, fazíamos o que nos mandavam. Foi uma grande escola”.

Luís Bonixe, investigador na área, não hesita em reconhecer às rádios piratas um papel importante na formação de futuros jornalistas: “Havia uma margem, se calhar exagerada em alguns casos, uma margem bastante grande para o erro. Mas era um processo aprendizagem que muitos jovens aproveitaram e hoje são jornalistas que construíram uma carreira de sucesso”.

Portugal a uns anos de distância da Europa

Quando, em Portugal, nos anos 70, as rádios piratas começam a surgir, na Europa o processo já havia crescido e muito. O processo tardio, comparativamente com o resto da Europa, deveu-se, essencialmente, ao regime ditatorial de Salazar. “A primeira rádio pirata na Europa a que a literatura faz referência é, em 1958, na Dinamarca, a rádio Mercur. E, em Portugal, isso seria impossível ou extremamente difícil com o regime de então. Só depois de 1974 é que se começa a despoletar este desejo e esta possibilidade de os cidadãos se organizarem em grupos e, em alguns casos, de forma individual e em fazerem as suas rádios locais”, sublinha Bonixe.

Contudo, as diferenças não ficam por aqui. Segundo Luís Bonixe, autor do blogue “Rádio e Jornalismo”, Portugal diferencia-se da Europa também “ao nível dos propósitos”. Se, numa primeira fase, estes eram iguais, numa segunda fase existem diferenças percetíveis. “Por exemplo, em Itália, o movimento já é muito politizado, em França, o movimento é sobretudo ao nível de causas sociais. Ora, em Portugal nós não temos muitas dessas situações. Em Portugal há um desejo de afirmar um local”, explica Bonixe.

Luís Humberto Marcos foi o representante de Portugal no Congresso Internacional de Rádios Livres em Estrasburgo, a 25 de abril de 1987. Na altura, como dirigente do Centro de Formação de Jornalistas, foi considerado a pessoa mais indicada para poder estar no congresso. Com o objetivo de “organizar e dar substância e força ao movimento das rádios em toda a Europa”, o congresso foi, para Luís Humberto, uma experiência que permitiu perceber que, em 1987, Portugal era uma exceção em termos numéricos: “Já não havia nenhum país que tivesse tantas rádios livres como Portugal. Cá, as rádios tinham surgido como cogumelos espalhados por todo o país. Não tínhamos uma entidade agregadora das rádios, estávamos num espaço de grande liberdade”.

Não se tem conhecimento de um segundo congresso. Apesar de “uma entrega muito grande”, referida por Luís Humberto Marcos, o movimento foi enfraquecendo dentro e além-fronteiras. Foi uma época única em Portugal e nos demais países. Marcou vidas, uma geração, a Rádio, a História.