As Rádios Piratas vieram instaurar o caos no espetro radiofónico, na radiodifusão e na forma de fazer e viver a Rádio. Foi um momento ímpar na sociedade portuguesa. Nas palavras de David Pontes, “a rádio era feita de baixo para cima”. Nem ouvintes, nem Governo podiam ficar indiferentes perante a parafernália.

O Governo interveio a 24 de dezembro de 1988 e os piratas receberam a notícia do encerramento de todas as rádios que emitiam ilegalmente. Todas elas puderam então ir a concurso público e apresentar o seu projeto para operar dentro da legalidade. O Governo decidiu, uns meses depois, quem deveria continuar e quem teria de encerrar os seus emissores, tendo em conta as suas condições, estruturas, motivações, entre outros indicadores.

Bernardino Guimarães, pirata da Rádios Caos, conta que “a lei estabelecia uma quantidade incrível de condições e era muito difícil, tecnicamente, chegar lᔝ, e acrescenta que “a legalização acabou por ser feita mais para acabar com as rádios livres do que para as legalizar”.

Em meados de 1989 começaram a aparecer as primeiras rádios locais e legais em Portugal. O número de rádios diminuiu para menos de metade, ficando-se, oficialmente, pelas 314 estações, de acordo com o Gabinete para os Meios de Comunicação Social (GMCS). Foi um processo tardio, contestado e difícil. Desde então, tem-se assistido à fusão de rádios nos grupos económicos mais fortes.

Processo de legalização: “Qualquer lei que aparecesse era importante, mesmo com insuficiências”

António Colaço não considera ter sido radioamador, mas tinha a rádio no coração, em particular a Rádio Antena Livre de Abrantes. Numa viagem ao passado, recorda que, em março de 1989, “depois que as rádios livres fecharam, recebi um convite para coordenar o Gabinete de Imprensa do Grupo Parlamentar do Partido Socialista (PS)”.

O antigo assessor da bancada do PS explica que a legalização das rádios foi um processo difícil, mas “houve muita luta, vinda de muitos lados”. “Porque acreditávamos que tinha razão de ser”, explica.

Passados 25 anos, António Colaço ainda recorda essa luta: “Os encontros das Rádios Livres. A continuação das emissões, desafiando os serviços radioelétricos. As idas à Assembleia da República, eu e o Emídio Rangel íamos cada um para o seu lado falar com os deputados. Tudo isso foram contributos. Foi uma luta de sete ou mais anos. Nada caiu do céu”.

Os encontros das Rádios Livres foram decisivos para os primeiros projetos de lei. Colaço lembra-se que foi em Abrantes que tiveram lugar três dos maiores encontros de rádio que se fizeram no país. No último dos encontros, os deputados participaram nos debates e o então Presidente da República, Ramalho Eanes, deu a António Colaço, ao serviço da Rádio Antena Livre de Abrantes, a primeira entrevista a uma Rádio Pirata. “Andei quatro horas atrás dele até conseguir” e “foi um grande contributo para a causa da legalização das Rádios Livres”, explica.

“Foi uma luta de sete ou mais anos. Nada caiu do céu” – António Colaço

O caminho para a legalização das Rádios Piratas foi sinuoso. António Colaço conta que o fantasma que mais teve de enfrentar foi o da partidarização. “Tive de convencer os meus interlocutores. Desde o secretário de Estado Raúl Junqueiro, (…) todos estavam com esses fantasmas”, explica.

Também as discordâncias quanto ao movimento atrasaram o processo. “Houve divergências no movimento, ao longo dos tempos. Naquela altura, nós defendíamos que, não existindo ainda uma iniciativa legislativa avançada, qualquer coisa que aparecesse era muito importante, mesmo com todas as insuficiências que tivesse”.

Para a lei ser aprovada houve o contributo de vários secretários de Estado, entre eles, Raúl Junqueiro e Anselmo Rodrigues. Mas também foi importante o envolvimento dos grupos parlamentares, “a nomear Dinis Alves, Jorge Lacão e Miguel Relvas”, acrescenta Colaço. “Os debates tiveram o apoio de todas as forças partidárias” e lá se aprovou a adiada Lei n.º 87/88, de 30 de julho.

Ensaio para a legalização: “Não se tratava de proibir as rádios piratas, mas permitir as rádios locais”

Antes da Lei de 1988, já existira um projeto-lei para pôr ordem no panorama radiofónico do país. Seis anos antes, a 25 de novembro de 1983, Dinis Alves e Jaime Ramos apresentaram o projeto para atribuição de licenças a rádios locais. Dinis Alves conta a história do projeto-lei que pretendia a criação dos Serviços Locais da Radiodifusão Sonora por Via Hertziana (SLRS), “um nome pomposo para rádios locais”, diz.

“Minha amada Rádio”

“Amanhã vai doer mais.
Agora, ainda não demos por nada.
Temos o corpo quente da pancada.
Agora erguemos os copos e o espanto todo.

Agora não dói.
Agora, ainda não sabemos que dói.
É certo: o amor da rádio nunca acaba.
Afastai-vos da lepra que este silêncio traz.

De quarentena companheiros.
Que aos outros, aos que sobram, este silêncio também pesa.
Escutemos o silêncio das vozes que sobram.
Sussurrante nostalgia do que virá.

Voltaremos à antena numa inesperada manhã, para dizer de novo:
O amor da rádio nunca acaba!
Erguemos pois os copos e os beijos.
Uma manhã destas, surpreenderemos os espantalhos do FM.
Amada rádio, até já”.

Fernando Alves, dezembro de 1988, no encerramento das Rádios Piratas, aos microfones da TSF

Dinis Alves trabalhou em jornais, televisão e rádio, e foi deputado pelo PS. Como muitos radialistas portugueses da época, nasceu em Angola, lá viveu até aos 17 anos e também lá nasceu o seu “bichinho” da rádio. “Sendo socialista, adepto da liberdade e com uma grande paixão pelos media, esta foi uma das primeiras iniciativas que tomei: fazer a apresentação do tal projeto-lei para a criação das rádios locais”, conta.

O deputado Jaime Ramos, do PSD, associou-se-lhe. Dinis Alves explica que “foi muito importante contar com deputados dos dois principais partidos de Portugal, do bloco central, a apoiar o projeto”. O antigo deputado socialista conta que não houve resistência por parte do PSD, mas sim por parte do PS e explica que “essa oposição dos socialistas radicava do facto de a rádio ir ficar com a Direita, era o capital que ia entrar. Não era um discurso assumido, mas a resistência era essa”. Entre os apoiantes encontrava-se o Secretário de Estado das Telecomunicações, Raúl Junqueiro.

Dinis Alves ainda guarda o caderninho A5 do Projeto-lei 252/3 sobre os Serviços Locais da Radiodifusão Sonora por Via Hertziana, com os seus 53 artigos. Foi apresentado na Assembleia da República em finais de 1983, ainda antes do pico da febre das Rádios Piratas, mas não chegou a discussão, nem a ser votado. Quando a Assembleia da República foi dissolvida pelo Presidente Ramalho Eanes, o projeto-lei caiu, com todos os outros. “Nós demos o primeiro passo, foi fundamental este arranque. Não estava na agenda política. Ninguém estava à espera. Pensavam que o processo iria demorar muito mais”.

O próprio Dinis Alves era também um pirata das rádios. Recorda que, nesta altura, o movimento rebentou: “A partir daí, tivemos manchetes, uma grande cobertura nos jornais. E as rádios sentiram-se mais legitimadas, sentiram-se com força, pois andavam a ser apreendidas pelos serviços radioelétricos, porque havia dois deputados na Assembleia que tinham apresentado um projeto-lei de criação de rádios locais”.

O pirata e antigo deputado explica que o processo “não se tratava de proibir as rádios piratas, mas permitir as rádios locais”. “Podiam ser legalizadas algumas ou não, mas é uma questão diferente de permitir o acesso ao espaço radioelétrico”, explica, que era, na época, considerado um espaço finito. Para Dinis Alves, o importante era legalizá-las, pois “era inconcebível ter só duas rádios”.

Anos passados, já no Governo de Cavaco Silva, chegou a lei que foi realmente implementada. Esta era bastante similar, com uma estrutura idêntica. “Eles foram beber à nossa, pois era um processo bastante detalhado”. Geralmente, quem conta a história das Rádios Piratas esquece este capítulo, “o processo inicial é um bocado apagado em relação à história das rádios locais”.

Até aos dias de hoje, o processo de legalização das Rádios Livres é controverso e não reúne consensos. Contudo, há um facto que não deixa espaço para discórdias: o surgimento, a vida e também o fim das Rádios Piratas marcaram não só o espaço e a história da Rádio portuguesa, mas também uma geração.