“Notava-se um grande vazio de comunicação, a seguir ao 25 de abril de 74”. Foi esta a principal motivação de José Farinha, ao criar a Rádio Imprevisto, em 1979. Alguns conhecimentos técnicos, aliados à vontade de comunicar, levaram ao fabrico de “aparelhos rudimentares para começar a invadir as ondas”. O desejo era despoletar uma situação que um dia abrisse as portas a mais rádios, um sonho partilhado com Hermínia Silva, mulher e companheira de aventuras de José.

A rádio de José e Hermínia não foi a primeira rádio pirata, mas foi uma das pioneiras e das que maior impacto teve. “Houve experiências anteriores a mim. Nomeadamente antes do 25 de abril, houve experiências em onda média”, explica José Farinha. As emissões da Imprevisto, inicialmente feitas a partir da morada do casal, eram ouvidas no centro da cidade – inclusive pelo poder, na Assembleia da República. “Talvez por isso e no início, não sendo a única, foi aquela que mais se destacou, porque estava a ser ouvida pelo poder”.

Se, nos últimos anos das rádios piratas, passou a haver um “regime de tolerância” e as autoridades já não se preocupavam tanto com mandados de busca e material apreendido, o mesmo não aconteceu durante os primeiros tempos da Imprevisto. José explica que, “no início, era do género toca-e-foge”. Como a perseguição era muita, as emissões não eram certas. “Transmitíamos uma ou duas horas, depois desligávamos e, um ou dois dias a seguir, voltávamos a emitir”, conta José.

Um estúdio num armário

Pioneiros e inovadores, começaram a disponibilizar o número de telefone para os ouvintes os contactarem em direto. “Era uma perfeita novidade na época e fez com que as autoridades ficassem aparvalhadas. Nem acreditavam que era verdade e achavam que estávamos a fazer bluff, o que ainda nos deu algum tempo”, explicou o casal. O resultado do atrevimento foi “uma grande perseguição que culminou num cerco” à casa de José e Hermínia e à apreensão do material.

A programação, os ouvintes e os colaboradores

As perseguições não fizeram com que a Imprevisto deixasse de emitir. Como resolveram o problema do material apreendido? Hermínia relembra o marido: “Como tu eras o técnico daquilo tudo, conseguiste pôr um emissor no carro, um gira-discos…”. A equipa da Imprevisto começou a pré-gravar os programas em casa, numa cassete, para simular os diretos a partir do carro. As emissões passaram a ser móveis e a sair dos mais variados locais. Inclusive das traseiras do Ministério da Justiça.

A proliferação das rádios piratas foi sendo cada vez mais notória e, à medida que estas apareciam, a perseguição diminuía. Com isto, a Rádio Imprevisto pôde também passar a ter emissões mais regulares e uma grelha de programação mais consistente. “Nós faziamos de tudo um pouco”, explica José. “Eu tratava de toda a parte técnica e também fazia um espaço de música aos sábados. Cheguei também a dar apoio ao programa da Hermínia, um programa de música portuguesa”.

Pioneiros na proximidade

“Éramos uma equipa muito grande, porque formámo-nos em cooperativa. Chegamos a criar a Cooperativa de Radiodifusão Rádio Imprevisto”, conta Hermínia. A rádio tinha cerca de duas dezenas de trabalhadores. Quanto aos ouvintes, também não seriam poucos. “Tínhamos essa noção, através das chamadas telefónicas. Durante uma hora era pousar e atender, pousar e atender”, relembra o fundador da Imprevisto.

Quanto à programação, José dá destaque a um espaço de heavy metal que chegou a ser referido nos jornais O Sete e Blitz. “Era o melhor programa da época. Chamava-se ‘Metal em Chamas’ e era feito pelo Mário Rui de Carvalho, o atual sonoplasta da Rádio Comercial”. Refere ainda um programa de jazz, o “Jazzirico”, de João Lopes, atual crítico de cinema na TSF, e um espaço dedicado às crianças, conduzido pela filha do casal. O professor e historiador Jorge Martins também passou pela Imprevisto, assim como os jornalistas Henrique Ribeiro e Hernâni Carvalho. “Fazíamos recolha de notícias de âmbito local, íamos divulgando o que sabíamos. Naquela época era muito importante, porque havia menos comunicação”, explicam.

A despedida de uma rádio para sempre pirata

A Rádio Imprevisto foi crescendo e recebendo cada vez mais apoios. Numa fase final, recebiam discos das editoras e angariavam fundos através do programa de discos pedidos. Hermínia explica que as dedicatórias eram feitas através de pequenos impressos, vendidos a cinco escudos cada. “Eram cinco tijolos – o tijolo simbolizava ‘construir a sua rádio’ – e havia muita participação”. Quando se formaram em cooperativa, a rádio começou também a ter “publicidade com clientes a sério e faturação”.

Era esta a situação da Imprevisto “até chegar a época em que disseram ‘Agora temos de acabar, porque a lei vai ser aprovada e todas as rádios vão ter de se calar’. Isto foi em 89”, relembra José. Como todas as outras, a Imprevisto fechou, mas não sem uma festa de despedida. “A 22 de dezembro fizemos uma festa de despedida numa sala grande na zona da Pontinha. Encheu com ouvintes e simpatizantes e teve a presença de Letina Gentil e Vasco Rafael”, conta o casal.

“Éramos apolíticos”

A Rádio Imprevisto candidatou-se ao concurso público para obter licença de emissão e, a partir daí, esperaram pelo resultado. “Nós não fomos selecionados, não ganhamos o alvará”, conta José. Como não podiam voltar a emitir, também a Cooperativa foi dissolvida. “Não fazia sentido existir, porque não queríamos nem podiamos dedicar-nos à produção de rádio”, explicou. “Fomos à nossa vida”. A vida de Hermínia continuou numa outra empresa não ligada ao setor e José começou a trabalhar como técnico na Rádio Nova Antena.

“Fomos cobaias para os que vieram e acabaram por nos absorver”

Se a Imprevisto influenciou outras rádios durante os nove anos de existência? José não hesita: “Disso não tenho dúvida”. A emissora nascida em Odivelas chegou às ondas hertzianas numa época que que o espetro radioelétrico “era praticamente virgem”. Neste sentido, o antigo animador de rádio considera que a Imprevisto foi como um balão de ensaio. “Fomos cobaias para os que vieram e acabaram por nos absorver”.

Era grande o interesse em saber quem eram as pessoas por detrás da Imprevisto. “Ligavam para nós e queriam saber quem éramos, de onde vínhamos e o que estávamos a fazer”, explica José. Os próprios partidos políticos tentavam saber mais informações sobre a Imprevisto. Para o fundador da rádio, a explicação é simples: “A nossa rádio causou furor, éramos atrevidos”.

Hermínia descreve os nove anos em que esteve na rádio como “um período muito rico para quem gosta de comunicar”. Através do microfone, contavam o que se passava e aquilo com que discordavam em relação à lei, às pressões e perseguições. Os ouvintes retribuíam de todas as formas e sentiam-se motivados ao sentirem que a rádio fazia frente às dificuldades.

A Imprevisto, que ficou para sempre pirata, marcou a história da rádio em Portugal. No início dos anos 80, Fernando Pessa visitava a casa de José e Hermínia para fazer um documentário que viria a passar na RTP2. O casal não se esquece da frase com que o jornalista fechou a peça: “O sol, quando nasce, nasce para todos… Não na rádio, reparai!”. Uns anos depois, em 1989, o sol não nasceu para a Imprevisto. “É verdade, nós ficamos só com a chuva”, conclui Hermínia.