Jorge Fiel chegou ao Comércio do Porto em 1981. Os tempos eram outros e, contrastando com o que acontece hoje em dia, não era necessária uma licenciatura em Jornalismo para exercer a profissão. Por isso, “o Comércio foi a sua escola de Jornalismo”, onde cresceu profissionalmente e teve oportunidade de fazer coisas que hoje dificilmente seriam possíveis, como primeiras páginas antes dos trinta anos.
Apesar de ter saído pouco tempo depois, em 1983, acabaria por voltar em 1987 para ser chefe daquela que foi a primeira redação completamente informatizada do país.
O ponto mais alto enquanto jornalista do Comércio, no entanto, chegaria com a explosão do “Sãobentogate”, o conhecido caso de corrupção na Polícia Judiciária (PJ) do Porto que, na altura, estava sediada no número 12 da Rua de São Bento da Vitória. “Os casos de polícia já eram importantes na altura, mas o Sãobentogate deu-lhes mais notoriedade”, conta.
A 30 de Dezembro de 1986, quando o Comércio do Porto publicou a primeira notícia sobre o caso da PJ, Rogério Gomes era chefe de redação. “Hoje há muitos processos de corrupção, mas na altura foi a primeira vez que se descobriu algo dentro da polícia. Afinal, estamos a falar de uma época em que a investigação jornalística dentro dos poderes públicos era praticamente inexistente”.
“Encontrei excelentes companheiros de percurso”
À semelhança do que aconteceu com Jorge Fiel, Rogério Gomes também teve duas fases no jornal, voltando, em 2005, enquanto director, e integrando as comemorações dos 150 anos do Comércio do Porto, nas quais conseguiram, por exemplo, levar o então Presidente da República Jorge Sampaio à sede do jornal ou editar três obras com base nos arquivos do Comércio. “Foi uma experiência profissional rica, e, humanamente, encontrei excelentes companheiros de percurso”, relembra.
Manuel Serrão também começou a sua actividade jornalística na redação do Comércio do Porto em 1983, onde fez de tudo um pouco para “ganhar tarimba”. No entanto, o que mais gostou de fazer, para além da coluna de opinião A Cara e o Caso, foi a cobertura das campanhas de Mário Soares e Freitas do Amaral para as presidenciais de 1986 – e os “quinze dias na estrada” que isso implicou.
“Cobrir a campanha eleitoral do ponto de vista jornalístico era tipo a volta a Portugal em bicicleta” em termos de importância. Enquanto a Agência Lusa relatava os eventos factuais, Manuel Serrão tinha de encontrar um tema sobre o qual escrever. Aproveita para falar da falta que fazem os jornalistas de antes que se “moviam e avançavam atrás da notícia”, contrastando com os que agora, graças aos avanços tecnológicos e à multiplicação de meios para receber informação, “se contentam com aquela que recebem”.
“Não houve outro sítio do qual me custasse tanto sair”
David Pontes contou uma “história que tem piada e que, infelizmente, não tem muitas condições para se repetir”: em 1999, quase toda a redacção do então desaparecido 24 Horas foi convidada para integrar um projeto cujo objetivo era renovar completamente um jornal – o Comércio do Porto.
“É algo que já não acontece: pegar numa redacção inteira e passá-la para outra. Não conseguimos recuperar o que era o Comércio, porque não conseguimos vender tanto como antigamente, mas conseguimos ultrapassar os vinte e tal mil exemplares e chatear o Jornal de Notícias”, recorda.
Como era um jornal do norte e, ao contrário de muitos, o fecho das edições não acontecia em Lisboa, “recuperámos aquela coisa de fechar e irmos todos para o café ou, às vezes, irmos todos jantar às onze e meia da noite. Não houve outro sítio do qual me custasse tanto sair”, afirma.
No entanto, apesar da equipa interessante com quem trabalhou, foi convidado a ser diretor numa altura em que as condições da imprensa já se estavam a degradar, sendo “quase impossível recuperar um caminho que se tinha perdido durante a década de 80, até com o aparecimento dos novos meios”.
O encerramento do Comércio do Porto
Não há uma situação específica que tenha levado ao desaparecimento do jornal, mas um conjunto de situações que, em simultâneo, se revelaram fatais. Helena Lima, professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, aponta a década de 90 como “um novo ciclo para os jornais portugueses” e, perante isso, “houve os que foram capazes de se adaptar e sobreviver, e os que não foram”.
Contudo, a questão financeira também não era pequena. Quando, em 2001, o Comércio foi vendido ao grupo espanhol Prensa Ibérica, “o dinheiro recebido com a privatização foi imediatamente desviado para pagar uma dívida anterior à sua fase de intervenção estatal, o que descapitalizou o jornal”.
O jornalismo regional sofre do problema alheio que é centralização geográfica do poder, factor também referido por David Pontes. “As notícias e o jornalismo existem quando há políticos e decisões. Lisboa tem os governos, nós temos as autarquias. Enquanto não houver um poder político forte numa determinada região, é muito difícil para um jornal regional assegurar a sua sobrevivência”, explica David Pontes.
Também segundo Helena Lima, o Porto perdeu “os bancos, as fontes de poder, as vozes – e, por isso, a sua capacidade de dar notícia”. Acima de tudo, “o Comércio nunca foi capaz de fazer concorrência ao Jornal de Notícias”, acabando por perder o rumo e não ser capaz de encontrar uma estratégia editorial que captasse novos públicos.
Mais do que uma perda material, perdeu-se “um jornal que assumisse as causas do norte e que as defendesse”, lamenta Manuel Serrão. David vai mais longe: perder o Comércio foi como uma “limitação da vida cívica e da capacidade de agir, pela perda de interlocutores e de fontes de debate”. Ainda assim, para Jorge Fiel foi mais do que isso: foi perder a casa onde “nasceu como jornalista”.