De nada valeram os protestos de proprietários, lojistas, ou funcionários. No dia 2 de julho de 1999, após várias batalhas jurídicas, o Dallas fechou mesmo as portas. Durante 15 anos, enquanto se aguardava uma resolução, o espaço esteve aberto ao saque e ao vandalismo.

Nas imediações do “setor norte”, ainda se sente o cheiro a mofo que provém das frinchas solitárias da porta de vidro. O espaço, que outrora albergou gerações, continua a ser derrotado pelo tempo. Na falta de uma resolução, restam as memórias.

“Aquele Ferru’s, aquele Coqueiro, aquele Splash, era só gente!”

Funcionário do Dallas desde 1987, Artur Raposo, de 69 anos, mantém-se ligado à portaria dos edifícios adjacentes. Acompanhou o auge, o período decadente e a retumbante queda final. Não havia volta a dar. As portas foram soldadas para sempre. Fecharam o “seu” Dallas. No presente mantém-se nostalgia, do passado restou a revolta. “Tenho saudades, claro. Era o chefe da segurança e éramos 50 e tal funcionários, entre limpeza e segurança. Senti uma grande revolta quando fechou. Alguns funcionários não receberam e outros tiveram de ir para tribunal”, conta.

Da antiga superfície recorda, sobretudo, o grande predicado que o demarcava dos restantes centros comerciais: as casas de diversão noturna. “Aquele Ferru’s, aquele Coqueiro, aquele Splash, era só gente!”. E nas datas festivas, o Dallas tornava-se ainda mais imponente. “As pessoas não fazem ideia do que era o Dallas em passagens de ano, carnavais e afins. Era o fim do mundo em gente. Eram mais de três mil pessoas nas discotecas. E só fechavam às 6h”.

Mas havia mais. A magnitude do Dallas, nos seus tempos áureos, abarcava todo o tipo de ofertas. “Havia de tudo: restaurantes, discotecas, bares, tudo mesmo. As pessoas não fazem ideia do tamanho disto. Agora não há nenhum shopping assim. Foi pena”, referiu.

Mais de 500 lojas

O Centro Comercial Dallas abrangia uma área que começava na Avenida da Boavista e terminava no Bessa. Ao longo do seu espaço, maioritariamente debaixo do solo, existiam mais de 500 lojas, dispostas de uma forma que ficou conhecida como um “labirinto”. O empreendimento nunca chegou a ser legalizado.

Quanto aos motivos que levaram ao encerramento do centro comercial, Artur Raposo refuta o argumento da suposta falta de segurança. Na sua opinião, as motivações foram outras. “Não posso dizer nada porque não sou técnico, mas não considero que houvesse falta de segurança. Houveram outros interesses… Mas saiu o tiro pela culatra. Pessoalmente, nunca tive grandes problemas ao nível da segurança”, relembrou o antigo funcionário.

A “mentira” da falta de condições de segurança

Paulo Pinto, de 44 anos, foi um dos jovens que cresceu no Dallas em finais década de 80. Em 1988, com 18 anos, começou a trabalhar como ‘barman’ na Discoteca Afro-Life e na Danceteria Ferru’s. Conheceu bem os cantos à casa e recorda como esta se demarcava dos seus pares e daqueles que a sucederam. “O Dallas era um espaço cheio de vida que aliava um comércio sofisticado (para a época), a um comércio de características mais tradicionais e onde todas as pessoas se conheciam, o que, de alguma forma, contrasta com a frieza dos espaços atuais”, diz.

A oferta também era distinta, sobretudo ao nível dos espaços noturnos que vieram a consagrar o Dallas em muitos livros de memórias. Paulo Pinto recorda-os, precisamente, como um elemento diferenciador. E estende o tapete às restantes ofertas que o espaço agregava. “Havia vários tipos de comércio, desde a restauração à moda, passando pelo comércio de jogos electrónicos (estávamos na época do ‘Spectrum‘), culminando nos espaços de diversão noturna, como bares e discotecas. A meu ver, estes últimos representam a principal diferença quando comparamos o Dallas com as superfícies atuais”, recordou.

Inspirado na série

Paulo Pinto, que é também o criador da página do Centro Comercial Dallas no facebook, relembra a influência da série norte-americana Dallas no antigo shopping center. “O Dallas tinha uma arquitetura vanguardista inspirada na série televisiva com o mesmo nome – que foi transmitida no início da década de 80. O inconfundível edifício espelhado não deixa qualquer margem para dúvidas”.

O encerramento do centro comercial continua a não convencer boa parte das pessoas. Paulo Pinto revê-se nessa posição e considera que os argumentos são infundados para uma decisão tão drástica. “O encerramento do Dallas foi promovido pela Câmara do Porto, que justificou tal decisão com a mentira da falta de condições de segurança. Digo mentira porque, como se sabe, ainda existem espaços daquela época, com características idênticas que, apesar de se encontrem nos ‘cuidados paliativos’, ainda vão resistindo”, continuou.

“Ao longo desses quinze anos o Dallas teve algum problema de segurança ao nível das infra-estruturas? Não, pelo menos que seja público. O problema residia no seu horário alargado? Bastava reformulá-lo. Encerrar? Porquê? Interesses imobiliários terão estado por detrás da decisão. Como é sabido, hoje as superfícies comerciais pertencem a uma só entidade gestora, enquanto no Dallas cada espaço tinha o seu proprietário, o que terá dificultado as negociações. Optou-se então pela solução mais fácil: o encerramento”, afirmou o ex-barman.

Ainda assim, considera que o centro comercial terá fechado num momento interessante, pois não passou pela mesma travessia no deserto que outros espaços seus contemporâneos. “Se o Dallas fosse uma pessoa, diria que foi alguém que viveu a vida intensamente, desaparecendo antes de ficar ‘ligado às máquinas’, e possibilitando, dessa forma, boas recordações por parte dos amigos, ao invés de recordações sobre alguém moribundo a arrastar-se no tempo. O Dallas soube aparecer e desaparecer”, disse Paulo Pinto.

O espaço que reunia Pedro Passos Coelho, Rui Rio, Menezes… e Louçã

Óscar Branco foi uma das figuras que estrelou os tempos áureos do Dallas. Vivia numa correria entre a companhia de teatro e os espetáculos no Splash, onde os seus sketch’s – que hoje em dia teriam sido catalogados como espetáculos de stand up comedy – se tornaram num marco das noites no centro comercial. Viria a dirigir, posteriormente, a secção de humor no Splash. Exulta as “peregrinações” noturnas à ala norte do Dallas, local de paragem de todo o tipo de clientes.

“O Dallas, na sua maioria, era constituído por lojas minúsculas e sem a âncora das grandes marcas, mas, curiosamente, transformava-se completamente ao cair da noite, tornando-se num espaço de peregrinação de centenas de pessoas que procuravam divertir-se nessa grande festa que foram os anos 80. E era assim porque, essencialmente, juntava espaços diversificados e de referência como o ‘Splash’, ‘Lá Lá Lá’, ‘Strong’ ou o ‘Coqueiro'”, referiu o conhecido humorista.

O último sobrevivente

Apesar de toda a área do Centro Comercial Dallas se encontrar fechada, ainda existe uma pequena loja que está a ser utilizada por um eletricista. Herdou o negócio do pai e, apesar da porta de saída daquele setor do centro comercial se encontrar sempre fechada, é lá, ladeado de poeiras e lojas-fantasma, que desenvolve o seu negócio. Com receio de implicações futuras, não quis prestar declarações ao JPN.

Em relação ao seu Splash, Óscar Branco revela que um local onde se poderia encontrar toda a gente. As atuações ao vivo, fossem elas musicais ou humorísticas, não careciam de afluência. “O Splash era a catedral dos músicos e o Rui Veloso, Rui Reininho, Tito Paris, Dany Silva, Rui Mingas e tantos outros, eram visitas obrigatórias. No meio da multidão, podíamos encontrar numa mesa os jovens social democratas, Marques Mendes, Passos Coelho, Rui Rio, Luís Filipe Menezes, Pedro Vinha e na mesa ao lado o Francisco Louçã”.

Desses dias, várias histórias ficaram cravadas na carreira do humorista. E são tantas que “dariam um livro fantástico”: “Certa vez, um porteiro fez queixa aos sócios que eu tinha metido lá dentro uns ciganos e que ele não se responsabilizava pelos desacatos. Quando eles me vêm pedir satisfações, apresento-lhes o Paco de Lúcia, o Pepe de Lúcia e o Pastorious, que acabaram no palco. O mesmo aconteceu com Ivan Lins, que o gerente queria expulsar porque insistia em tocar e porque interrompeu o sketch para abraçar os artistas”.

Em julho de 1999, quando o Dallas encerrava definitivamente, Óscar Branco já tinha deixado para trás a sua atividade no Splash. Acompanhou fecho do centro comercial, mas a polémica decisão não o surpreendeu. “Quando o Dallas foi encerrado já não tinha qualquer ligação com o Splash. Contudo, uma construção manhosa, dirigida por uma administração duvidosa e com dezenas de lojistas a serem enganados… só poderia levar ao seu encerramento”, confessou.

“Há um longuíssimo caminho a percorrer…”

Contrariamente às perceções que as últimas notícias sobre o Plano de Pormenor do Dallas causaram na opinião pública, a resolução do problema ainda pode estar distante. Contactada pelo JPN, fonte da autarquia esclareceu o verdadeiro ponto da situação. “Não há novidade nenhuma. A única coisa que a câmara fez foi um plano de pormenor, que está executado e aprovado no executivo e vai agora à assembleia municipal. Não há nada mais do que isso”.

E um novo Dallas?

Para os mais saudosos, um ressurgimento do Centro Comercial Dallas, numa fase inicial, poderia ser a resolução perfeita do impasse. Mas os tempos eram outros. “O Dallas possuía uma dinâmica própria, impossível de igualar, resultado da conjugação de vários factores. Surgiu na época certa, no local certo. Hoje teria sido um fracasso”, defende Paulo Pinto.

De resto, relativamente ao impasse que se perpetua há já 15 anos, os progressos são poucos. “Neste momento o que está aprovado é o Plano de Pormenor. Diz lá que se pode fazer um centro comercial – o que dá um bocadinho mais de detalhes -, mas não significa mais que isto. Não há desenvolvimentos. Isto não é mais do que uma especificação do que está no Plano Diretor. Há um longuíssimo caminho a percorrer. Criou-se a ideia de que estava tudo resolvido… e não está. Mas por vezes as pessoas não distinguem isso,” disse.

A questão que se impõe é a mesma de há mais de uma década. Quando é que se vai encontrar uma solução? A resposta não pressupõe grandes otimismos. “Quando se fala em longo caminho, pode ser um caminho que pode demorar um mês, mas também pode demorar 10 anos. Mistura burocracia com a decisão das pessoas. Se as pessoas se puserem de acordo sobre a mesma coisa em determinado dia, é num dia que se resolve. Agora, se têm divergências, ainda que pequenas… bem, já lá vão 15 anos”, elucidou fonte da autarquia.