“A minha vida dava um livro”. É assim que Ermelinda começa a contar a sua história, que se confunde com a vida do Mercado do Bolhão. É a quinta geração a trabalhar no célebre espaço do Porto. “Vim para aqui com dias de vida. A minha avó trabalhava aqui e isto ainda não era mercado”, conta a peixeira.

Orfã desde os cinco anos, Ermelinda aprendeu a arte do negócio com a avó materna. “A minha avó punha-me um caixote pequeno de madeira à frente da banca com uma balança pequenina de corda e uma sardinhinha e estava ali. Eu adorava. As pessoas depois achavam-me graça e davam-me esmolas, que eu dava à minha avó”.

Entre as arcas frigoríficas e as caixas de esferovite acabadas de chegar da lota, vai-se descobrindo a vida de uma comerciante que afirma que o Bolhão foi a sua luta. “Eu era a que mais vendia peixe deste mercado”, explica. E com os frutos do trabalho, Ermelinda aproveitou para expandir o negócio da família. “Cheguei a ter um armazém de gelo cá dentro, um armazém de sacas de plástico também cá dentro e um armazém de sal e câmaras frigoríficas construídas totalmente por mim”. Numa altura em que ainda não se falava em crise nem troika, chegou a ter três funcionários na sua banca de peixe.

A ameaça das grandes superfícies

E se o tempo não para, para o Bolhão não foi a melhor cura. De acordo com Ermelinda, há alguns anos atrás era tudo diferente. “No tempo da minha avó chegámos a ser 600 comerciantes aqui”. Mas se a maioria critica a gestão do mercado por parte da autarquia, para esta comerciante tudo começou com a inauguração do centro comercial NorteShopping, no final dos anos 90. Porém, tudo isto não passa de um importante estímulo para a sua atividade, que diz nada ter a ver com o atendimento nas grandes superfícies. “Eu estou aqui a falar convosco, mas se vier um cliente, eu paro e vou atendê-lo. Tento saber o que quer, o que procura. Nos ‘continentes’ não é nada assim”. Acrescenta ainda que “um funcionário faz uma casa, mas também a pode desgraçar”.

Ao som do rádio que preenche o novo balcão junto às escadas, depois do seu posto original ter sido destruído por um incêndio em 2012, Ermelinda conta que as quase 20 horas diárias de trabalho não permitiam dar atenção aos seus. “Casei-me com 19 anos, mas dediquei-me demasiado ao negócio”. No entanto, a força do trabalho e o prestígio que a atingiam não permitiam que se sentisse ultrapassada”. O meu ex-marido tinha o vício do jogo, das mulheres”. E como se isso não bastasse,”chegou-me a bater, mas eu batia-lhe ainda mais. Na cara onde a minha falecida avó e a minha mãe beijaram, ninguém bate”.

Com pouco mais de trinta anos, Ermelinda via-se, assim, responsável pelos dois filhos e pela família que dependia de todo o seu esforço. “Trabalhei feita louca para dar uma vida melhor aos meus filhos”. Desde colégios a faculdades privadas, a comerciante fala com orgulho da estabilidade que não conseguiu ter, mas que com orgulho deu aos seus filhos.

“Só ouço falar mal uns dos outros e de dinheiro”

E o Bolhão? Ainda é uma casa? Ermelinda é dura na resposta. “O ambiente, antigamente, não tinha nada a ver. Tudo o que tínhamos a dizer dizíamos na cara e cinco minutos depois já éramos amigos outra vez”. A amizade prevalecia e a entreajuda era frequente. E agora? “Agora mete-me nojo. Só ouço falar mal uns dos outros e de dinheiro. Não é uma questão de carinho pelo mercado, é mais pela questão monetária”.

Ermelinda afirma assim que é das poucas que conhece e vive o Bolhão como se fosse um lar. “Este mercado está-me no sangue. Faz parte de mim”. Com um caminho cheio de obstáculos, a comerciante diz estar consciente que é das poucas que resiste e é a última da sua família a manter vivo o negócio. Diz ser apenas uma gota no oceano, mas não seria o Bolhão um oceano menor sem a sua gota?