A viagem da Baixa do Porto ao Bairro do Cerco dura cerca de meia hora. É do Bolhão que o 401 sai em direção a S. Roque, um percurso longo e pouco habitual para as dezenas de pessoas que entram e saem do autocarro. A partir do momento em que o autocarro contorna o Estádio do Dragão, a paisagem vai ficando, aos poucos, diferente.

“Não é o bairro que me define”

O Lagarteiro
O Aldoar

Quem olha pela janela vê a magia da Baixa transformada em 34 blocos de cimento na conhecida Zona Oriental. Após percorrer grande parte dos mais de 800 fogos habitacionais, Pedras Salgadas é o destino. É aí que a realidade denuncia quem lá vai pela primeira vez, admirado com o labirinto que é o Bairro do Cerco.

Nas traseiras da Rua do Cerco, uma pequena porta de madeira dá acesso à Cerporto. Criada em 1995, a instituição funciona como um centro de tempos livres e ajuda a dar novas perspetivas sobre a vida e o mundo às crianças que por lá passam. Embora o espaço seja pequeno – uma pequena sala, uma casa de banho e um escritório -, Sandra e Cláudia, as “doutoras”, acolhem 40 crianças e jovens, por ano, na instituição. Faz parte do protocolo com a Segurança Social e deixa inúmeras crianças à espera de vaga.

Uma imagem mais colorida do Bairro

É no pequeno escritório que Inês fala na primeira pessoa e conta a sua experiência no Cerco. Com 16 anos vive no Bairro há cerca de dez e afirma gostar de viver ali. “Não é aquele bairro problemático que toda a gente pensa. Não é aquele ambiente pesado que as pessoas imaginam”.

A união entre todos é algo de que Inês fala com gosto e garante que nunca sentiu necessidade de esconder aquilo que era. “Nunca tive medo daquilo que sou, nunca escondi nada. Já convivi com pessoas que escondiam isso. Mas é uma coisa que eu aceito, é uma escolha deles. Não posso julgar”. No entanto, garante que o preconceito se faz sentir quando menciona que é do Cerco. Os olhares admirados e o receio passam quando Inês explica que nem tudo é tão mau quanto parece. “Estou sempre a tentar mudar ou a moldar melhor a opinião daqueles que têm uma má opinião do Cerco”, afirma.

“Nunca tive medo daquilo que sou, nunca escondi nada”

Mas nem tudo é perfeito e existem sempre alguns problemas associados à droga e a agressões. Desta forma, a Cerporto é fundamental para Inês. Na instituição há cerca de cinco anos, assegura que esta foi importante para moldar e construir o seu pensamento, sendo por isso uma influência positiva na sua vida.

Inês frequenta o 11.º ano da Escola Secundária do Cerco e já sabe o que quer fazer no futuro: tirar o curso de Desporto na Universidade do Porto. Quer ficar perto de casa, mas não por medo. “Temos sempre as nossas raízes aqui. Temos a família, os amigos. Tudo que criámos durante uma vida”.

É no futebol que vê um futuro promissor e o seu grande sonho é ingressar a Seleção Nacional e treinar uma equipa. Juntou-se ao Boavista este ano, mas esta é uma paixão que nutre desde os sete anos. Ainda assim, tem tempo para frequentar o Ateliê de Dança e o de Canto do Clube de Porta Aberta.

Os pais tentam acompanhar esta pedalada ao máximo e o apoio é incondicional. “Sei que não consigo fazer tudo, não consigo mudar o mundo mas sempre que houver um tempinho tenho que estar a fazer alguma coisa para que me sinta bem. Para que eu sinta que vai ser produtivo para mim. E eles apoiam-me imenso”, garante.

O erro de generalizar

Vasco e Inês cumprimentam-se na reduzida sala de trabalhos da instituição. Embora Vasco tenha 18 anos, é da turma da Inês e também ele tem uma história a contar sobre o Cerco. Já não vive ali há alguns anos, mas a sua vida passa muito por lá, uma vez que a sua mãe é uma das auxiliares do Clube.

Tal como Inês, Vasco diz sentir o preconceito em relação ao bairro e nota a imagem exagerada que as pessoas têm do mesmo. Há partes más como em todos os locais, mas também há partes boas e, muitas vezes, sente que a parte mais positiva é abafada pelos momentos de tensão que vão acontecendo. “É um bocado injusto. Porque também há pessoas boas no bairro. Há gente honesta e há gente que não é honesta. Conheço dos dois. Mas é incorreto generalizar”, sublinha.

Na opinião de Vasco, há dois grandes problemas no Bairro que vão passando de geração em geração. Um deles é a droga. “Quem vive no bairro cresce a ver certas coisas e uma criança de dois anos que vê outras pessoas a vender droga e a roubar vai crescer a pensar que aquilo não é fazer mal. Estará mais propensa, de certo modo, a fazê-lo”.

Outro problema é a falta de respeito entre culturas, que origina graves conflitos que envolvem a etnia cigana. “Há pessoas que não sabem respeitar os outros. Isso pode realmente criar problemas”. Ainda assim, e com o objetivo de seguir o Ensino Superior na área das Engenharias, reforça a ideia de que falta força de vontade para mudar e lutar por objetivos.

O lado de quem tenta que as coisas melhorem

O problema

A Cerporto, aberta desde 1995 conta com alguns apoios, sendo a Junta de Freguesia de Campanhã fundamental durante o seu percurso até agora. Também o Banco Alimentar é importante para rechear as prateleiras com lanches para as crianças e a GAES Porto para a realização de atividades, mas também para a transmissão de valores e ideais. Carla Carvalho é uma das assistentes sociais responsáveis pelo Cerco na Junta de Freguesia de Campanhã e acredita que, “neste momento, aquilo que está a destabilizar o Bairro é a junção de culturas”. “Digamos que o Bairro sofreu há cerca de cinco anos uma reformulação em termos populacionais. Ou seja, com a demolição do Bairro de S. João de Deus, houve muitas famílias que foram realojadas no Bairro do Cerco e não houve preparação para isto. Era outro bairro, com dinâmicas diferentes, com um número elevado de pessoas de etnia cigana, com outras culturas e que foram colocados no Bairro do Cerco sem haver essa tal preparação o que cria muitos conflitos”.

É precisamente esse o objetivo da Cerporto, a única resposta social que cobre jovens dos 6 aos 18 anos. Sandra Cavacos, educadora social, relembra a importância de abrir novos caminhos às crianças do Bairro. Trabalha com a instituição há cerca de cinco anos e logo percebeu que o seu trabalho teria de ir um pouco mais além do que os jovens. Tenta sempre intervir no contexto familiar, mas relembra o quanto isso pode ser difícil, embora a sua ajuda nunca tenha sido rejeitada.

Ainda assim, as dificuldades cobrem algumas áreas fundamentais para as crianças. Maior parte dos contextos familiares são destruturados e a pobreza é uma realidade dura. “Às vezes choca-nos um bocadinho ver alguma negligência a nível emocional, mesmo ao nível da higiene…”.

O bairro acaba por criar uma espécie de “instinto de sobrevivência”, uma vez que é a realidade das dezenas de famílias que lá habitam. O contacto com as drogas ou com outras situações menos favoráveis acaba por influenciar a forma de agir e de estar.

Ainda assim, o facto das crianças desde cedo se tentarem afirmar e darem o argumento de “morar do Bairro” pode ser entendido como uma atitude de insegurança. A socióloga Maria João Pereira afirma que “no fundo fazem aquilo do ‘nós somos fortes, nós somos perigosos, nós somos terroristas’ porque eles são tão inseguros quanto a tudo o resto… Porque eles acham que nem vivem no Porto, eles dizem que vão ao Porto. Porque eles estão tão afastados da cidade. E sentem-se muito inseguros porque não sabem nada, não conhecem nada além daquele meio deles”.