Iniciativa do grupo estudantil Quórum – Fórum Político, esta quinta-feira, 6 de novembro, a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) recebe uma sessão de esclarecimento sobre a epidemia de infeção pelo vírus Ébola.
O grupo
O Quórum – Fórum Político “é um grupo de estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto que se dedica a criar um espaço de debate positivo sobre temas políticos e sociais pertinentes e importantes”. Estreou-se em novembro de 2011, e desde então já organizaram “dezenas de debates e outros eventos, subordinados a temas tão diversos como o estado social, educação em Portugal, ou racionalização de recursos em Saúde”.
A sessão, que acontece na Aula Magna, às 18h, abrangerá as perspetivas da biologia, da saúde pública e da ética, contando com um orador para cada tema: António Sarmento, chefe do Serviço de Doenças Infeciosas do Hospital de São João, “que apresentará os aspetos clínicos e biológicos sobre a doença, entre outros aspetos”; e Henrique Barros, presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, “que falará dos planos de contingência nacional e global para a epidemia, os riscos reais para Portugal e o papel dos media na implementação de planos de ação”.
Já Filipe Almeida, presidente da Comissão de Ética para a Saúde do Centro Hospitalar de S. João, “que discutirá aspetos relacionadas com a legitimidade de transporte de doentes para países não afetados, do fecho de fronteiras e controlo de passageiros, e o papel dos profissionais de saúde na assistência obrigatória a pessoas infetadas”.
Sobre o tema, em jeito de antecipação, o JPN esteve à conversa com Gustavo Martins-Coelho, médico interno na Unidade de Saúde Pública e investigador doutorando da FMUP. “Esta doença já existe há cerca de 40 anos”, conta. “A particularidade deste surto deve-se a ter surgido em países onde não costumava emergir, e ter-se tornado no maior surto que tivemos até hoje, já ultrapassando as quatro mil pessoas”.
Cuidados a ter
E porque é que desta vez foi diferente? “Creio que houve uma conjugação de três fatores”, afirma. Um, “a existência de animais que não adoecem com a doença, mas são capazes de transmitir o vírus. Se estes animais adoecessem com a doença, provavelmente morreriam antes de ser caçados e comidos. Ou se o padrão de dieta daqueles povos não incluísse estes animais, não haveria transmissão aos humanos”. Dois, “o vírus surgir numa região onde a via de transmissão está favorecida por fatores culturais: o vírus é mais contagioso na parte final da doença e após a morte e, especificamente naquela região, existe um culto dos mortos muito enraizado, uma proximidade com o cadáver intensa”. Três, “o sobrepovoamento destas zonas” e o facto das fronteiras não serem “claras”, ou seja, “uma pequena população infetada consegue rapidamente espalhar o contágio em outros países”.
“Para além disto”, explica, esta “é uma população muito difícil de abordar do ponto de vista da saúde pública. Os serviços de saúde são muito mais precários, aliados a uma concentração populacional em espaços sem higiene e sem água canalizada”. Paralelamente, há ainda “uma certa desconfiança pela população em relação aos profissionais de saúde. Os relatos dos médicos dizem ‘Não, as pessoas não vêm ao hospital, elas escondem-se, nós temos de ir atrás delas para o meio do mato! Elas têm medo de vir ao hospital porque acham que nós lhes vamos fazer mal’. A população vê a entrar pessoas relativamente saudáveis com uma febre ou vómitos, e a saírem do hospital mortas”, relata.
O vírus está a mudar continuamente a sua composição genética. Poderia o vírus de mudar de tal forma que pudesse ser transmitido pelo ar?
É muito improvável. As mudanças do vírus estão relacionadas com a sua virulência – ou seja a capacidade de provocar doença e morte -, e com a sua imunogenicidade – a capacidade de desencadear uma resposta do sistema imunitário do hospedeiro.
As mutações não estão relacionadas com os modos de transmissão e dispersão. Essas são características muito mais difíceis de mudar.
O que se poderia realmente fazer no caso se haver uma situação de pandemia, em que qualquer pessoa poderia ser infetada na rua?
Um americano disse uma frase muito apropriada: “É preciso ter algum trabalho para apanhar o Ébola”. Isto prende-se com as vias de contágios. Para transmitir o Ébola é preciso estar doente, e isto leva-nos à primeira medida de prevenção. Se as pessoas se sentirem doentes, com sintomas sugestivos de Ébola, não devem sair de casa para não contagiar outras pessoas, devem ligar para a linha Saúde24. A segunda medida tem a ver com o controlo de saúde nos cuidados de saúde. Neste campo estamos completamente preparados. Os hospitais estão preparados para isolar os doentes e se for necessário, entrarão as entidades de saúde para identificar todos os contactos do doentes e procurar conter o contágio. Portanto, se houver um surto em Portugal – algo extremamente improvável – serão estas as medidas a tomar.
A enfermeira de Dallas que assistiu a primeira vítima mortal de Ébola nos Estados Unidos foi infetada com o vírus. Fala-se em “falhas no protocolo de segurança” como causa de contágio. É necessário uma formação em grande escala?
Os erros podem sempre acontecer, o que temos de fazer é tentar minimizá-los. É óbvio que é preciso que os profissionais tenham formação – e a formação tem sido dada – mas também é necessário que os procedimentos sejam seguidos à risca, o que nem sempre acontece. No caso do Ébola, seguir os procedimentos à risca pode ser a diferença entre a vida e a morte.
“O seu controlo em África é difícil não por causa de ser uma doença difícil de controlar”, mas por não existirem “serviços de saúde capazes de dar resposta”
A Ministra da Saúde da Guiné-Bissau afirmou que Portugal deveria montar uma base de retaguarda para a proteção e combate ao Ébola. Será que isso teria impacto no controlo do vírus noutros países?
É muito importante. O professor Henrique Barros deu uma entrevista em que estabeleceu um paralelismo entre a SIDA e o Ébola. Desenvolvendo a ideia dele, em ambos os casos acontece que o maior entrave ao controlo da doença não é a doença em si, não é a investigação biomédica, é o ter pessoal e condições disponíveis no terreno que permitam o controlo da doença. É por isso que a SIDA é uma tragédia em África e é uma tragédia bastante menor na Europa, porque nós aqui conseguimos oferecer tratamento que não conseguimos oferecer em África. O mesmo acontece com o Ébola. O seu controlo em África é difícil não por causa de ser uma doença difícil de controlar – porque desde que se sigam os procedimentos adequados o Ébola controla-se em duas penadas. O grande problema em África está em não ter uns serviços de saúde capazes de dar resposta. E nesse sentido, é importante a colaboração não só de Portugal mas de todos os países dadores, ou seja, os países que habitualmente cooperam com África.
Ainda assim, a Ordem dos Médicos de Portugal diz que existe um risco muito alto para Portugal.
Eu acho que o que a Ordem dos Médicos diz não é incompatível com aquilo que tem sido dito pelo Diretor Geral da Saúde e pelo Secretário de Estado da Saúde. Existe um alto risco em Portugal dadas as nossas relações com África. Mas o risco real que existe em Portugal é de o vírus chegar cá: todos os dias chegam a Portugal pessoas vindas de países africanos com maior ou menor contacto com o vírus. E por isso, neste sentido, a Ordem dos Médicos tem razão, o risco em Portugal talvez seja mais elevado do que noutros países europeus. Por outro lado o que a Direção Geral de Saúde diz, e também é verdade, é que se uma pessoa infetada com Ébola chegar a Portugal, o risco de isso desencadear um surto em Portugal é baixo, porque nós estamos preparados para o conter.
As questões éticas do “soro experimental”
O soro experimental ZMapp tem levantado questões éticas, já que a eficácia e efeitos colaterais não foram comprovados. Para Gustavo, “há dois princípios éticos que têm de ser pesados: o princípio da beneficência e o da não-maleficência”: “O primeiro diz que todas as ações [dos médicos] devem ser orientadas para fazer o bem ao doente, o segundo considera que as ações devem ser norteadas para não fazer mal ao doente. Neste caso, os profissionais da saúde não têm muito para oferecer ao doente, a não ser tratamento de suporte – manter as funções vitais do doente até este ser capaz de lutar contra a infeção, por si. Tendo a possibilidade de oferecer algo para além deste tratamento, estamos a respeitar o princípio da beneficência. Por outro lado, à luz do princípio da não maleficência, poderíamos pensar que não devemos fazer nada para não correr o risco de estarmos a fazer mal ao paciente. Pesando as consequências: a probabilidade de termos uma reação mortal ao soro é mais baixa do que morrer com a infeção, que é mortal em 90% dos casos, por isso, na minha opinião, deve dar-se o soro.
Isso é muito diferente, por exemplo, do que aconteceu em Dallas? Porque depois do contágio da enfermeira, fecharam-se escolas, foi-se à procura de todos os passageiros que estavam no mesmo avião que ela e os deputados votaram a favor de uma declaração de um estado de calamidade devido ao Ébola… isso poderia acontecer aqui?
Os americanos nesse aspeto, são muito dados, fruto da sua cultura, ao pânico e a empolar as coisas. Decretar o estado de calamidade parece claramente excessivo. Procurar identificar os contactos todos daquele doente, e aqueles que vieram com ele no avião… isso é o que nós fazemos diariamente: recebemos uma notificação de uma doença contagiosa e vamos identificar todas as pessoas que contactaram com o infetado. Ainda há dois meses tive de analisar 300 pessoas num dia porque houve um caso de tuberculose – que é muito mais contagiosa do que o Ébola – em Ílhavo. Não é preciso declarar o estado de calamidade por causa disto, isto é o procedimento habitual em qualquer doença contagiosa. Claro que a questão aqui é esta: como o Ébola assusta, isto torna-se notícia. Os meus 300 rastreios de tuberculose não foram notícia. Se a mesma situação tivesse acontecido com uma pessoa doente com Ébola, eu teria feito os mesmos 300 rastreios, provavelmente viriam todos negativos, e era uma grande tragédia. Creio que há algum exagero, algum empolamento e algum alarme desnecessário em função de algum medo que é compreensível, mas infundado.
“Não é a pessoa comum que tem de se preocupar, são os funcionários do centro de saúde ou do hospital, que têm de tomar precauções”
O Ministro da Saúde também disse que íamos ter acesso ao soro experimental…
Sim. Isso é uma medida de tratamento e os hospitais estão preparados para garantir o tratamento dos doentes com uma infeção pelo vírus Ébola, oferecendo cuidados de saúde do melhor nível. Tudo aquilo que nós temos para oferecer a nível mundial está disponível no Serviço Nacional de Saúde. Para o Ébola e para o resto.
Existem formas de erradicar o vírus facilmente?
Até hoje não está descrita a sobrevivência do vírus fora de organismos vivos ou fora de fluídos desses mesmos organismos vivos. Por exemplo, mesmo que uma pessoa infetada pelo Ébola vomite, o vírus vai estar no vómito. Mas a partir do momento em que o vómito seque, o vírus é destruído. Por exemplo, no caso do doente que foi de autocarro para o Hospital São João e podia ter contagiado toda a gente no veículo, se tivesse Ébola: desde que ele não se começasse a esvair em sangue, ou não vomitasse para cima de alguém, ele não podia contagiar ninguém. Lavar a roupa a altas temperaturas destrói o vírus, deixá-la secar ao sol, ter o cuidado das superfícies estarem limpas e secas… Não é a pessoa comum que tem de se preocupar em assegurar a limpeza, são os funcionários do centro de saúde ou do hospital, que têm de tomar precauções. Os grupos de risco são os profissionais de saúde e os agentes funerários. Estes últimos, porque a altura em que a pessoa é mais contagiosa é depois de morrer. Preocupação imediata é outra: é ligar para a linha Saúde24. Se toda a gente souber isto, não é preciso saber o resto.