Passavam das 23 horas quando a fronteira finalmente se abriu. No posto de Bornholmer Strasse, mais tarde em outras regiões do centro de Berlim, a força da multidão levou a melhor sobre a desorientação dos guardas, não instruídos da abolição das restrições de viagens ao Oeste da cidade. Na origem, um mal-entendido entre o Governo da antiga República Democrática Alemã (RDA) aquando do anúncio de Gunter Schabowski, membro do Politburo.

Quando os primeiros milhares de pessoas foram recebidos com euforia em Berlim Ocidental nesse 9 de novembro, Mathias Schmelzer tinha apenas dois meses. “Não tenho nenhuma conexão com o muro, mas quando vejo o que sobra do mesmo tento imaginar como seria viver por detrás de um”, explica ao JPN o jovem alemão, hoje a tirar Engenharia Civil no Instituto Politécnico do Porto (IPP), ao abrigo do programa Erasmus. “Talvez até seja essa uma das razões pelo qual viajo tanto”, confessa.

9 de novembro, o “Dia Fatídico”

Durante diversos anos, vários acontecimentos relevantes para a História da Alemanha ocorreram no dia 9 de novembro. Em 1938, a Kristallnacht – ou “Noite dos Cristais”, em português – deu início ao Holocausto levado a cabo pelo regime nazi de Hitler: perto de 1300 judeus foram mortos ou levados ao suicídio e centenas de sinagogas e propriedades foram destruídas ou queimadas.
Hoje, a tragédia continua a ser um “assunto muito sensível para todos nós”, explica Birgit. Por isso, apesar das festividades e reportagens exibidas pelos media sobre a queda do muro a 9 de novembro, o feriado nacional do Dia da Unidade Alemão celebra-se a 3 de outubro, dia oficial da reunificação do país.

O estudante nasceu na Berlim Oriental, no distrito de Lichtenberg, onde os Stasi, a polícia secreta da RDA, mantinham o seu mais extenso complexo. Apesar das restrições à liberdade, a vida não era tão dura como as vezes é contado. “Contra aquilo que é senso comum, sempre tivemos fruta em Berlim Oriental, os meus pais tinham canais de televisão ocidentais, não éramos espiados a toda a hora e nem toda a gente pertencia aos Stasi”, esclarece.

A cinco, seis horas de Berlim, Heidi e Karl foram dois dos milhões de germânicos que assistiram de longe ao desenrolar dos acontecimentos na capital. A sua filha, Birgit Ankerl, nasceria em Straubing, um pequeno município a leste de Munique, cinco semanas após a queda do muro. “Quando estava a crescer, não consigo recordar ser uma alemã de Leste. Sempre vi a Alemanha como unida”, recorda ao JPN.

Em Portugal há pouco mais de dois meses para estudar Jornalismo na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), Birgit confessa com vergonha que, apesar de tanto viajar, nunca visitou Berlim. “Está na minha lista para 2015”, acrescenta prontamente. Os seus pais cresceram em pequenas vilas da Baviera e não tinham familiares na zona Oriental. “Era como se fosse uma outra Alemanha, que eles não conheciam, e bastante misteriosa”, explica a estudante.

As histórias e os mitos do outro lado

As restrições de acesso impostas tornavam a comunicação entre ambas as regiões um processo extremamente complicado. O mais próximo que Birgit estava do outro lado da “cortina de ferro” era quando escutava as memórias de um casal de idosos da sua terra natal, que cruzou a fronteira logo após a Queda do Muro. “Dizem que a vida é muito diferente e, de um modo, melhor no Oeste, mas ainda têm saudades dos tempos na RDA, porque, apesar de nem sempre terem tudo o que queriam, tinham tudo o precisavam”.

Já Mathias e os pais moveram-se para a zona ocidental de Berlim quando este terminou o ensino primário. As aulas de História nunca mais foram as mesmas. “Existiam diferenças nas coisas que nos eram contadas pela minha família e pelos professores em Lichtenberg das explicadas em livros escritos por autores ocidentais e pelos professores que nunca tinham colocado um pé na antiga RDA”.

“Existem várias piadas das pessoas de Oeste sobre as de Este, sobre quão pobres somos na Alemanha Oriental, que nunca tínhamos bananas para comer, etc.”

Da forte igreja católica aos salários mais elevados, são várias as diferenças na região ocidental de Berlim que no dia-a-dia se fazem notar. “Por vezes palavras muito comuns na antiga Alemanha Oriental eram completamente desconhecidas na parte ocidental ou utilizadas com um sentido completamente diferente”, continua o estudante. O desconhecimento provocado pela separação deu também azo a anedotas e mitos de ambas as partes. “Existem várias piadas das pessoas de Oeste sobre as de Este, sobre quão pobres somos na Alemanha Oriental, que nunca tínhamos bananas para comer, etc.”.

No entanto, Birgit acredita que a sua geração tem esbatido esses contrastes e preconceitos. “Uma das minhas melhores amigas é de Erfurt, uma cidade na antiga Alemanha Oriental, e não consigo apontar grandes diferenças entre nós as duas”. Ainda assim, partilha de um dos diagnósticos de Mathias: as pessoas mais velhas têm dificuldades a formar memórias coletivas.

A última vez que o sentiu foi com o falecimento de Otfried Preußler, um famoso escritor germânico de contos infantis, a fevereiro do último ano. “A notícia correu os media, mas a geração da antiga Alemanha Oriental não o conhecia, porque não tinha tido acesso aos seus livros. Para nós foi algo mesmo trágico, porque foi parte da nossa infância que tinha desaparecido”, relembra.

Contra o “Muro dos Balcãs”

Para homenagear as 138 pessoas que perderam a vida ao tentar ultrapassar o Muro de Berlim, “existem na cidade várias cruzes brancas que, nas últimas semanas, estão a ser retiradas por ativistas e levadas para as fronteiras do país como forma de protesto para com as recentes políticas europeias sobre os refugiados”, conta Mathias.
No final do mês de setembro, e face ao crescente número de refugiados na Alemanha, o Governo Federal aprovou um polémico novo regulamento ao direito de asilo, onde a Sérvia, a Macedónia e a Bósnia-Herzegovina constam como países de origem segura e cujas pessoas não poderão receber asilo em solo germânico.

“Berlim, uma cidade de artistas”

Para celebrar o 25.º aniversário da Queda do Muro, oito mil balões brancos e luminosos vão assinalar o curso tomado pelo muro que dividiu o país em dois. Afinal, “Berlim é uma cidade de artistas”, diz Mathias. Em Prenzlauer Berg, por exemplo, o “corredor da morte” deu lugar ao Mauerpark, “um parque público para sair no fim-de-semana, fazer uns churrascos, ir a festivais culturais ou a mercados em segunda mão”.

Um pouco por todo o lado, onde em tempos o muro se ergueu, existem linhas de pedras ou metal cravadas no chão para que se possa perceber o seu trajeto. Noutras áreas, os vestígios do muro foram pintados e grafitados depois da sua queda. A agora rasgada “cortina de ferro” tornou-se numa atração turística para o país. “Em alguns pontos importantes estão pessoas em uniforme, como no Checkpoint Charlie, para que os turistas possam parar para tirar uma foto”, partilha o estudante.