Numa sala de autópsias do Hospital de Santo António (HSA), no Porto, Ricardo Taipa mostra um cérebro completo, dividido segundo as áreas que o compõe, em cima de uma bancada metalizada. Com a ajuda de uma espécie de espátula, o neurologista e neuropatologista de 35 anos explica as funções de cada uma das zonas: é como se estivesse a dar uma aula particular sobre este órgão, que a partir de agora pode ser colecionado e estudado de forma mais sistemática no Banco Português de Cérebros (BPC).

Taipa partilha a coordenação do primeiro banco do género em Portugal com Manuel Melo Pires, de 60 anos, também neurologista e neuropatologista. São os guardiões de oito cérebros já doados, nos últimos dois anos, durante o projeto-piloto que levou à criação e apresentação pública do BPC, há cerca de três semanas. O objetivo da entidade é, esclarece Melo Pires, “colecionar tecido cerebral de indivíduos com doenças neurológicas bem definidas” que pode depois ser cedido para investigação, em Portugal ou no estrangeiro.

Um cérebro pode ficar armazenado indefinidamente, revelam os neurologistas, e num pequeno armazém da Unidade de Neuropatologia do hospital do Porto, há cérebros com 30 ou 40 anos, conservados em formol e catalogados em prateleiras. No BPC, uma parte do cérebro é conservada nesta solução anti-séptica; a restante é congelada em arcas frigoríficas mantidas a -80ºC. Este tecido “muito precioso”, como o descreve Ricardo Taipa, “dá para muita investigação associada”. Dos cortes que são feitos – e que se podem ver nas fotografias – são retirados fragmentos microscópicos para futura análise.

É porque já se analisam cérebros post mortem há várias décadas que hoje os especialistas sabem que num doente com Alzheimer, por exemplo, “o hipocampo [responsável pela memória] é a zona mais afetada”, aponta Taipa. Estudar detalhadamente o cérebro de um paciente pode significar um diagnóstico definitivo – que, muitas vezes, diverge do diagnóstico feito em vida. Isto porque, nas doenças neurológicas, “muitos dos diagnósticos estabelecidos em vida são de probabilidade: pode ser muito alta ou menos alta”. “Ao contrário de outras doenças, as de um cérebro exigem quase a construção de um puzzle”, compara.

Processo sem custos para doentes e famílias

Imaginar um cérebro cortado para ser conservado e estudado por médicos e investigadores pode ser um assunto sensível. Aqui, no BPC, comparam-se áreas de tecido cerebral atrofiado para se atingir um consenso quanto ao diagnóstico – e ajudar, também, na terapêutica de futuros doentes. “Uma coisa que acontece em todas as doenças degenerativas é que o córtex, a zona mais escura, fica atrofiado”, vai explicando Ricardo Taipa, enquanto aponta para o cérebro em cima da mesa metalizada. “Os neurónios desaparecem e o cérebro fica com muito mais espaço, principalmente nos lobos temporais”.

Patologias como as de Alzheimer e Parkinson, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), a epilepsia e a paramiloidose – mais conhecida por “doença dos pezinhos” – podem vir a beneficiar dos tecidos que o BPC caracteriza e conserva, e a partir dos quais os seus coordenadores e outros médicos podem investigar. “Vamos conseguir estudar alterações cerebrais em doentes com paramiloidose”, revela Melo Pires. “Estamos a criar agora as fundações de algo que poderá ter um retorno realmente importante numa década, ou mais”, reflete Taipa. “Por cada resposta há mais dez perguntas”.

Desde a colheita de um cérebro até ao diagnóstico estabelecido “nunca passam menos de dois meses”, garante o jovem médico, para quem essa certeza “pode ter algumas implicações de aconselhamento genético” a nível da família do próprio doente. Já há mais quatro inscrições e o objetivo, a médio prazo, do BPC é ver chegar um por semana; neste período inicial após a divulgação, esperam um por mês.

Na consulta dedicada a demências do HSA, Ricardo Taipa estabelece uma relação de confiança com os pacientes e famílias – só assim consegue introduzir o assunto. “O drama é a pergunta ou a abordagem do tema poder chocar a família e esta achar que se está a desinvestir no doente. Porque essa é uma das grandes questões: quando já se está a falar na morte há esse ónus que fica no médico”, revela. Mesmo nos casos em que a resposta é negativa, não sente que haja “qualquer tipo de perda de confiança”. O mais complicado é aquilo que pode implicar nas exéquias fúnebres. “Tentamos que interfira o mínimo possível com o processo normal de um falecimento”, assegura, mas nem sempre conseguem que não atrase o funeral.

O “ato altruísta” de doar um órgão

A colheita é um dos fatores limitantes, sobretudo para um banco de cérebros recente. Para já, no BCP, só aceitam doações entre Braga e Santa Maria da Feira – mas estão a tentar alargar a todo o país, garante Melo Pires. Doadores e famílias não têm qualquer despesa associada ao processo: nem os primeiros, aquando da inscrição, nem os últimos na altura da colheita. As universidades do Minho e do Porto (através do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar) são parceiras do Centro Hospitalar do Porto (CHP), onde o Hospital Santo António se integra, e custeiam as despesas.

“Estamos a falar de uma doação, para investigação, de indivíduos em vida. É um ato altruísta porque, para o doente e família, o retorno não é mais do que ajudar as gerações vindouras”, reflete Taipa, que já passou por dois bancos de cérebros em Inglaterra (em Manchester e em Londres). Foi quando regressou, há pouco mais de dois anos, que a ideia do BPC arrancou. Com Melo Pires – que também esteve em Inglaterra, no fim da década de 1980, quando assistiu à criação das primeiras entidades do género naquele país -, dedicou-se a questões burocráticas. Para Portugal, Taipa trouxe conhecimento e experiência de profissionais com “protocolos de décadas”. “Nós estamos a começar, mas não vi nada lá fora que não se possa fazer cá”.

Para já apenas aceitam doações de pacientes com “doenças neurológicas bem definidas”. Só quando existir um “programa paralelo, académico, de investigação e seguimento de adultos saudáveis” é que as doações a título individual poderão existir, para controlo. Até lá, Ricardo Taipa e Manuel Melo Pires vão continuar a colecionar cérebros para investigações futuras.