A crise afetou o quotidiano. Porém, por vezes, o menor poder de compra leva a uma maior consciencialização da sociedade. O que outrora era colocado no lixo, agora é reutilizado e restaurado. Geralmente, vários produtos desde roupa a mobiliário estavam em bom estado, mas eram deixados ao lado dos contentores do lixo durante a noite.
É raro ver pela manhã, pessoas a vasculhar os ecopontos repletos de artigos ainda em bom estados, mas que foram substituídos por outros mais recentes.

O mundo laboral sofreu um grande impacto: menos procura é igual a menos oferta. As produções tiveram uma queda significativa, mas nem todas as profissões podem lamuriar. Trabalhos de restauro e reutilização do velho são cada vez mais requisitados. Estofadores, costureiras, sapateiros, entre outros, admitem estar numa fase próspera do negócio. O JPN foi falar com alguns trabalhadores sobre este período, onde “menos é mais”.

Estofador

Manuel dos Santos é estofador desde adolescente. Com poucos rendimentos foi forçado a abandonar a escola: “Eu não escolhi ser estofador, esta profissão escolheu-me”, conta.
Aprendeu esta “arte”, como a define, numa fábrica espanhola perto de sua casa. “Eles tinham técnicas incríveis, tudo o que sei devo a eles”.
Mal sabia Manuel que esta profissão ia render-lhe um bom ordenado no futuro. Na verdade, ser estofador não requer grandes habilitações literárias e é uma profissão bem remunerada.

Trabalha na empresa de distribuição nacional e internacional Anaric e tem a sua própria oficina em casa. O estofador conta que, nos últimos anos, tem recebido vários pedidos, sobretudo restauros. “Neste tempo de crise, as pessoas procuram mais os restauros do que comprar novo, como é evidente. (…) Tenho caso de clientes que já me apareceram com peças bastante danificadas e pedem-me opinião e eu aconselho a essas pessoas a restaurar, porque vale a pena”. Em suma, ambas as partes ficam a ganhar.

Manuel faz todo o tipo de modificações, desde mobiliário, automóveis a peças de decoração. Alterar o tecido de sofás e carros é “o pão nosso de cada dia” e é o que permite colocar “pão na mesa”.

Costureira 

Para quem acha que ir à costureira ou modista é muito século passado, engana-se. Este trabalho está a render bastante em pleno século XXI. Emília Amaral é reformada e trabalha por conta própria em sua casa: “Quando me tirarem a máquina de costura, é sinal de que vou morrer em breve”, conta a costureira, que tem de facto paixão por aquilo que faz.

É costureira “desde que me lembro como pessoa”, admite que esta profissão tem diversos altos e baixos e tudo está relacionado com a crise. “Antigamente era diferente, não havia muitas lojas e as meninas e moças vinham fazer a sua roupa. Com o passar dos anos, tem mais a ver com o dinheiro das famílias. Em 2000, era raro alguém bater à minha porta para pedir uma simples costura ou remendo”, conta Emília.

Mas os anos passaram e com  a idade o suposto seria diminuir o ritmo do trabalho e está a acontecer o inverso.Várias pessoas de diferentes faixas etárias e posições sociais solicitam o trabalho de Emília: “Tenho muitos pedidos ultimamente, a crise está a fazer com que as pessoas optem por pagar menos e consertar a peça do que gastar muito dinheiro para comprar uma nova e sem grande qualidade”.

Emília espera que a situação financeira e económica do país melhore, claro, mas a verdade é que sabe que o lucro extra que tem tido deve-se, infelizmente, a esta situação atual.

Sapateiro

Andar na calçada do Porto não é facil. Ter uns sapatos bem arranjados é a chave para não ter dores nos pés.

José Silva é sapateiro há mais de 40 anos. Tem uma pequena loja de consertos rápidos, ao lado de um prédio de habitação. “Passei aqui anos e não conhecia as pessoas que moravam aqui, porque nunca vinha cá. Cheguei a buscar muitos sapatos nos contentores do lixo e trazer para aqui, consertar e colocar à venda… e olhe que algumas pessoas compravam”, conta o sapateiro.

José não quer “puxar a brasa à sua sardinha”, mas admite que a sua profissão é muito relevante, porque, segundo a sabedoria popular, “a saúde vem dos pés”, conta.

As prateleiras estão repletas de sapatos por arranjar. Todos os dias, inúmeros pedidos, são apontados no bloco de notas de José, nada proporcional à quantidade de trabalho que tem para fazer.
Para o sapateiro, as pessoas são de extremos “Ou não arranjam nada ou de um momento para o outro, querem restaurar tudo e depois até deixam vários pares (de calçado) aqui esquecidos”, diz.

O sapateiro admite estar a ir bem com o negócio e afirma: “restaurar era coisa do passado e voltou a ser do presente”. José só espera que seja, também, “coisa” do futuro.