No seguimento das comemorações do Dia Mundial da Poesia, a Assírio & Alvim decidiu lançar, de novo, o Anuário de Poesia de Autores Não Publicados, uma compilação que, nos anos 80, foi responsável pelo lançamento de grandes nomes da poesia nacional, como Adília Lopes e José Alberto Oliveira. Na edição de 2015, esta publicação reuniu apenas 15 poemas (de 7 autores distintos) no seio de 2154 enviados.
Pedro Craveiro, de 24 anos, é mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e foi o mais jovem selecionado pela editora. Aliás, é o único ainda na casa dos vinte. O JPN falou com o autor de Variações em Adélia Prado (em caixa) sobre o seu percurso na poesia e o significado deste marco.
Comunhão entre a formação e a poesia
Craveiro confessa que o interesse pela poesia surgiu quando tinha cerca de 14 anos, altura em que começou a entrar em contacto com alguns nomes da literatura portuguesa através do programa de Língua Portuguesa. António Gedeão e Mário Cesariny são os nomes que destaca, nesta fase inicial do seu percurso.
Em termos de formação académica, revela que as suas opções foram cruciais e condicionaram toda esta jornada. Concluída a licenciatura em Estudos Portugueses e Lusófonos, na FLUP, salienta a forte componente de literatura portuguesa e os bons docentes como aspetos-chave. O mestrado, por sua vez, veio dar corpo ao conhecimento adquirido na etapa anterior.
“A inspiração é algo transcendente”
No que toca à matéria que inspira os poemas que escreve, o autor apoia muito desse processo no Íon, texto antigo de Platão, onde consta que “a inspiração é algo transcendente” e que a “a voz do poeta teve acesso a algo superior”. Craveiro não encontra, assim, outra explicação para os seus momentos de produção, que não o facto de se basear “nas pessoas e no amor”, tal como Alex Dimitrov – “All I know is I can’t stop writing about people./ So much happened. I can’t stop writing about love.” – jovem poeta nova-iorquino.
Formalmente, confessa que recolhe alguma influência da leitura de poetas brasileiros contemporâneos como Angélica Freitas, Luca Argel, Ricardo Domeneck, Matilde Campilho e Marília Garcia. Craveiro trabalha, inclusive, a questão do “poema-piada”, ramo que não tem muita tradição em Portugal. “Os brasileiros costumam até dizer, por vezes, que nós, os portugueses, levamos a poesia muito a sério”.
Variações em Adélia Prado
Sávio,
por tua causa
começam a acontecer coisas estranhas
comigo
tenho medo da Europa e quero visitar-te
ir ao Ceará e bebermos
um chá de limão
como deve estar quente Fortaleza
quero sair daqui apanhar o primeiro avião
e partir
estou sem paciência para as alcoviteiras
do meu quarteirão
chega de saber quem morreu, enviuvou ou tem corno
quero beijar a tua unha amarelada pelo vício do tabaco
sem ti perco os dias, esqueço-me de comer e o meu sono é pouco
tenho ensaiado perto do laranjal de minha casa
o nosso provável diálogo, quando me vieres buscar ao aeroporto com
os teus ray ban
diz-me a que horas pensas em mim para eu atrasar
o relógio da cozinha
caí no ciclo esquisito de te ver em todas as coisas
na chanata esquecida
no passarinho verde
ou no carteiro
Sávio, querido, espero por ti no aeroporto
com os cabelos soltos
como dita a natureza do primeiro encontro
Entrar no Anuário significou “uma satisfação íntima”
A publicação do poema Variações em Adélia Prado no Anuário da Assírio & Alvim foi recebida, por Craveiro, como uma satisfação íntima e não triunfalista. O facto de o júri, composto por grandes nomes da literatura portuguesa como Golgona Anghel, Armando Silva Carvalho e Almeida Faria, ter reconhecido “alguma consciência poética” já significou muito para o jovem autor.
O poema publicado “tem uma longa história por trás”. Retoma um poema de Adélia Prado, dedicado a um Jonathan, perante o qual o sujeito poético “sente uma falta de amor por ter fugido”. Craveiro começa a sua “variação” com uma apóstrofe a um Sávio, cearense que conhecera, há dois anos atrás.
Quando questionado sobre o facto deste poema espelhar ou não a obra até então produzida, o autor confessou ainda não ter um espólio literário. “Se dissesse que tinha uma obra estaria a ser arrogante e a demonstrar uma falta de noção perante o que escrevo”. Craveiro revela que tem “poemas dispersos” e que “talvez os venha a publicar”, mas que, para já, apenas pretende que “as pessoas leiam poesia e não façam dela um bicho de sete cabeças”.
“A poesia é um compromisso sério”
Craveiro não vê a poesia como profissão, antes como “um compromisso sério”. “Vivemos numa sociedade cada vez mais produtiva, neoliberal e virada para o que dá lucro”, o que, segundo o autor, retira algum protagonismo às artes. Ainda assim, salienta que estas “continuam a resistir a tempos destes”. Para o jovem, a poesia não é uma ocupação e confessa ter pena “de não lhe poder dedicar o tempo que gostaria, por ter de trabalhar em algo completamente diferente para poder sobreviver”.
Num futuro próximo, pretende publicar o seu trabalho. Contudo, não quer entregar apenas “um conjunto de poemas inconsistentes ou que não tragam nada de novo à poesia nacional”. Para o jovem, ser poeta é “não ser jornalista, isto é, não expor os factos tal e qual como são”. “É escrever de outra maneira tudo aquilo que a gente pensa, sente, diz ou escreve”.