Inaugurado há dois anos, o empreendimento realizado no Quarteirão das Cardosas, na Baixa do Porto, gerou um intenso debate entre vários especialistas em matéria de reabilitação urbana, que contestaram a estética, o grande capital investido e as expropriações que se verificaram com a construção do edifício.

Em 2011, o primeiro sinal foi dado: no Quarteirão das Cardosas era inaugurado um luxuoso hotel. O plano iniciou-se cinco anos antes, com a realização de um documento estratégico pela Porto Vivo – Sociedade de Reabilitação Urbana orientado para a zona.

Numa área em que os números de degradação e desocupação eram altos, mas onde morava um dos símbolos de maior valor histórico e patrimonial do Porto, a Porto Vivo decidiu reabilitar o quarteirão por via de construção do supracitado hotel, e, nas traseiras deste, do denominado Passeio das Cardosas, que obrigou à demolição de vários edifícios antigos.

Álvaro Santos, atual presidente da Porto Vivo – SRU, defende a requalificação por considerar que “à época, as Cardosas estavam adulteradas face à sua morfologia inicial”, e, dada a dimensão do espaço e localização na principal praça da cidade, “a solução passou pela reconversão do Passeio num hotel de alta qualidade e pelo reabilitar do restante parque edificado para habitação, serviços e comércio”. Uma solução, para alguns, lógica, mas, para outros, insensata.

Há menos edifícios em péssimo estado no Centro Histórico do Porto

O recente relatório de Monitorização da Operação de Reabilitação Urbana Sistemática da Área de Reabilitação Urbana do Centro Histórico do Porto (ARU-CHP) 2012-2013 aponta para um aumento de edifícios em bom estado de conservação em comparação com anos anteriores. Os dados apontam para apenas 3% de edifícios em péssimo estado.

Pequenos comerciantes e as expropriações

A Icomos Portugal, uma organização não-governamental que tem como objetivo a conservação de monumentos e sítios, apontou o dedo à Porto Vivo pelas demolições efetuadas “numa lógica não de reabilitação, mas sim de renovação urbana, que, em vez de terem em conta as necessidades da população local, antes a marginalizam, procurando, através da especulação imobiliária, alcançar grandes lucros”.

O burburinho desfavorável à obra persistiu, ainda que silenciosamente, e, enquanto isso, foram atribuídos prémios de melhor reabilitação urbana às Cardosas.

Além da polémica patrimonial, o plano de reabilitação motivou também discussão à volta das expropriações: pequenos comerciantes, à custa das obras que inflacionaram os preços das suas lojas, tiveram de abandonar as Cardosas. Foi o caso de Maria Eduarda Matos, proprietária de uma ourivesaria, que, por estar com o processo em tribunal, não aceitou falar ao JPN, e de Vítor Neves, de 64 anos, dono de uma loja de vestuário, que logrou uma solução apaziguadora, mas, ainda assim, longe da compensação financeira que pretendia.

“Com muita luta, muito custo, recebi uma indemnização. Mas não era aquilo que eu queria”. Álvaro Santos sustenta que as expropriações dos prédios aplicaram-se porque “alguns proprietários não aceitaram aderir ao projeto presente no Documento Estratégico”. Outros edifícios, “por via amigável”, foram adquiridos.

A via amigável foi a resposta para Vítor Neves, que tem agora uma loja sob aluguer no quarteirão e outra na Rua das Flores. O comerciante, no entanto, não se coíbe de afirmar que a reabilitação tornou-se nociva para o seu negócio: “Aqui à beira é tudo à base da restauração e o que eu queria era lojas deste género [vestuário], uma espécie Santa Catarina”, sustenta, afirmando que a transformação da rua na vertente pedonal “baixou o número de clientes locais” que antes “podiam estacionar o carro”.

Quanto aos apartamentos nos edifícios do Passeio, Vítor Neves acredita que “estejam ocupados”, mas para “alojamento local”. “Quem comprou foi para alugar ao dia, ou à semana”, refere, lamentando a pouca procura dos supostos inquilinos à sua loja.

Cardosas: o exemplo do que pode não ser boa reabilitação urbana

Fernando Matos Rodrigues é arquiteto e trabalha há mais de vinte anos no estudo da requalificação urbana no Porto. Acompanhou o caso das Cardosas desde o início e a opinião mantém-se acutilante: “As Cardosas não são o modelo a seguir em termos de reabilitação e urbanização na cidade. É um modelo insustentável e as Cardosas devem ser um exemplo a seguir naquilo que não é reabilitar”.

Uma posição mais comedida é a de Leonor Botelho, docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), que trabalhou com a Porto Vivo. “Compreendo a opção tomada no sentido do mercado imobiliário”, diz. Confrontada com a hipótese de, na mesma área, ter sido edificado um bloco habitacional para a população local, Botelho defende que “não fazia sentido construir algo para a população com menos recursos, uma ilha ou uma colmeia, nas costas de um hotel de cinco estrelas”.

Em conformidade com a análise de Botelho, tanto nos aspetos arquitetónicos como nos sociais, está a defesa de Álvaro Santos: “Lançou-se um concurso público para seleção de parceiro privado, ao qual esteve acometida a responsabilidade do investimento na obra. Foi esse parceiro, a empresa Lucios, que veio a contratar os responsáveis pelo projeto de execução – arquitetura e especialidades”, acrescentando que os custos do projeto “não eram compagináveis com ações de cariz mais social”. O cariz social, na reabilitação portuense, “faz sentido em locais como o Morro a Sé”, aponta.

“É importante haver o direito à cidade”

Amante da cidade Invicta, o arquiteto Fernando Matos Rodrigues entende que a visão de ver no Porto uma cidade “heterotópica e interclassisista” é quase utópica: “Considero que os interesses do grande capital são naturais para o Porto. Há é que tornar esses interesses compatíveis com os dos pequenos comerciantes, dos pequenos moradores”. “É importante as pessoas terem o direito à cidade, isto é, garantir o direito às pessoas a viver nesta cidade”, conclui.

Botelho, que estudou intimamente a reabilitação do Morro da Sé, crê que as Cardosas, no final das contas, foram positivas pelo “debate gerado”. Além disso, partilha da opinião de Matos Rodrigues: “As Cardosas não são um exemplo de reabilitação, mas o debate que se gerou, e ainda gera, foi benéfico”. Questionada quanto à estética do edifício, Leonor Botelho remete-se ao silêncio: “É subjetivo, há gente que não gosta de amarelo. Julgo que é uma pergunta para o arquiteto”, argumenta.

Já Matos Rodrigues apelida o edifício como algo “mimético, desinteressante e anacrónico”, assemelhando-se a “um Portugal dos Pequeninos”. O arquiteto repara que até o turismo se pode ressentir: “O turismo, hoje em dia, é cada vez mais uma experienciação do olhar e, nesse sentido, ninguém tem interesse em ver o edifício das Cardosas. Vão mais rapidamente ver o Bairro de São Victor, que está degradado, abandonado, mas que tem um valor arquitetónico muito mais elevado”.

Para o arquiteto, a construção é paradigmática em relação àquilo que o Porto se está a tornar. “É uma cidade que tem vindo a perder a sua essência, está a ficar uma cidade pastiche, uma Barcelona. Vemos restaurantes gourmet, livrarias que supostamente são adeptas da cultura, e perdeu-se muito a convivência de rua, que espelhava o verdadeiro Porto”, avalia.

Entre as inúmeras críticas desfavoráveis, da estética à gentrificação, Álvaro Santos defende que, comercialmente, o projeto é, passados dois anos, um caso de sucesso: “A resposta que o mercado deu, ao terem já sido comercializadas quase todas as frações comerciais e habitacionais, ao ali existir o hotel de maior qualidade e grande procura da cidade, ao existir uma praça com animação urbana periódica e ao ter sido alvo de prémios nacionais e internacionais ligados à reabilitação urbana, neste período de feroz crise económica e de retração de financiamento, são a confirmação do sucesso da ideia inicial, do projeto de execução e da obra realizada”.