A partir de dia 13 de maio de 2015 passa a ser obrigatório, oficialmente, em Portugal, o uso do novo acordo ortográfico (AO) da língua portuguesa. Cumprem-se seis anos do período de transição, tendo em conta a data de 13 de maio de 2009, que marcou a sua entrada em vigor em Portugal.
O assunto, ao longo dos anos, sempre gerou uma polémica exponencial, e hoje há várias ações em tribunal para travar o processo. O que pensam os agentes da palavra sobre isto? É, ou não, benéfico para a sociedade o novo acordo ortográfico? Na esfera do ensino, da escrita, da tradução, do jornalismo e da terapia da fala, isto é, entre várias valências da linguagem, o JPN foi tentar desconstruir a utilidade de mudar o modo de como se escreve em português.
Acordo tem erros gramaticais
Quem o afirma é Maria João Santos, professora de Português da Escola Secundária da Amadora. “Com este novo acordo perdemos letras que representavam sons que abriam as nossas vogais. Perdemos consoantes importantes. Agora escrevemos ‘receção’ e ‘recessão’. Na oralidade fica-se sem perceber se se fala da ‘recessão económica’ ou da ‘receção de alguma coisa'”, graceja.
“A perda dos hífenes não faz sentido em termos gramaticais, porque nós dizíamos ‘fim-de-semana’ e isso antes era uma palavra composta. Agora, com o acordo, dizemos que é um substantivo. E não é nada. São três substantivos diferentes, ‘fim’, ‘de’ e ‘semana’. O acordo, gramaticalmente, tem mesmo muitas falhas”, sublinha a professora.
Maria João Santos assume-se como “o mais contra possível” ao acordo, e vai mesmo mais longe: “O que tenho feito com os meus alunos é escrever nos testes uma notinha a dizer que os mesmos são escritos com o antigo acordo ortográfico, e vou continuar a fazer o mesmo, apesar desta obrigatoriedade. Se os meus alunos escreverem com o novo acordo, não os penalizo nos testes, mas se escreverem com o antigo, também não”.
Em relação aos estudantes, a professora acredita que a opinião geral não abona nada a favor da medida: “Os alunos ficam aterrorizados quando reparam em palavras novas como ‘autossuficiência’ ou ‘autorretrato’. Digo-lhes para, no exame nacional de Língua Portuguesa, escreverem com o novo acordo e que tenham esse cuidado. No outro dia disseram-me alguns alunos: ‘Eu vou colocar uma nota nos exames a dizer que me recuso a escrever com o acordo’, e eu disse para não o fazerem, porque assim iriam ver o exame anulado”.
Maria João assume, sem qualquer receio, que, nos exames nacionais que for corrigir, não penalizará quem continuar a usar a antiga ortografia. “Só corrigirei os erros, não os acordos ou a falta deles”, explica, salientando que tem conhecimento de “mais professores que farão o mesmo”.
Acentuação
Algumas palavras que antes tinham acento gráfico apenas para serem distinguidas de palavras que se escreviam da mesma forma, deixam de ser acentuadas com o AO: Agora escreve-se “pelo” e não “pêlo”, assim como “para” e não “pára” (imperativo singular do verbo parar). A exceção é a forma verbal “pôr”, que se mantém diferente da preposição “por”.
Escritores não são consensuais à medida
“Minha pátria é a língua portuguesa”, escreveu um dia Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego”. O que pensa quem escreve todos os dias, em prosa ou em poesia?
António Pedro Ribeiro, licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), cronista e autor de dezenas de livros de poesia, é categórico quanto ao novo AO: “Sou e sempre fui contra. Vou continuar a escrever da mesma maneira, como sempre escrevi. Não tinham nada que mexer na língua portuguesa. Acho o novo acordo ridículo, porque é uma imposição que vem de fora. É uma coisa artificial. Foi uma coisa sem lógica nenhuma, feita às três pancadas. Não foi devidamente explicado a ninguém quando surgiu”, sustenta.
Joaquim Morgado, poeta, músico e co-autor do programa radiofónico “Eclético Azul”, circunscrito à literatura, desbrava uma visão do assunto mais ambivalente. O escritor é a favor da ideia da existência de um acordo ortográfico, pois acha benéfica “a união entre os vários países de língua portuguesa, visto esta, atualmente, ser uma língua com pouco prestígio mundial”.
O que o poeta não gosta mesmo neste AO é “do caráter académico” que lhe deu criação. “Esta medida é linguística e cientificamente medíocre. É a fala que guia a escrita e não o contrário. Sou, por isso, a favor que a língua se aproxime da oralidade. Se a escrita quer chegar ao valor mágico da fala, a existência de acentos torna-se fundamental. Quererem eliminá-los é muito mau. Por exemplo, ter ‘acção’ sem dois ‘cês’ é bom para a fala, mas sem acento que indique se a vogal inicial é aberta ou não, isso é que é mau”, afirma.
Consoantes mudas
Passam a escrever-se apenas se forem pronunciadas como consoantes: “ação” em vez de “acção”, “ótimo” por “óptimo”, “perentório” e não “peremptório”. Quando a letra é lida como consoante, mantém-se também na escrita: “pacto” não se escreverá “pato”.
Como influenciará o AO a tradução e o jornalismo?
O Jornal de Notícias foi um dos vários órgãos de comunicação social a seguir o AO. Isabel Peixoto, jornalista no jornal, não viu muitas barreiras iniciais na adaptação à nova grafia. “Há situações que não me chocam nada, como a eliminação de consoantes mudas. Aqui, a aproximação da escrita à oralidade, sempre que esta esteja correta, parece fazer sentido”, explica.
Para Isabel Peixoto, o que mais lhe desagrada na nova escrita é “a dupla grafia em determinadas situações”, como o exemplo que nos dá da palavra “espectador”. “O acordo permite escrever esta palavra sem o ‘c’. O resultado [espetador], além de soar mal, gera confusão e faz com que a língua perca alguma da sua personalidade”, justifica.
De igual modo, a jornalista acredita ser “patética a eliminação de certos acentos” com o pressuposto de que, “quem está a ler o texto consegue perceber a palavra [exemplo: “pelo” em vez de “pêlo”]”. Neste caso concreto, Isabel crê que se mexeu “em vocábulos que estavam muito bem com os seus acentos já existentes”. Ainda assim, é da opinião de que “a língua não é estática”, que “evolui, como é suposto evoluir”.
Bem mais negativa é a posição de Isabel Freitas, tradutora licenciada em Línguas e Culturas Estrangeiras pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto. “A principal justificação de quem criou o acordo é a unificação da língua, mas esquecem-se que, além de estarem a tentar eliminar a memória histórica etimológica, tanto aqui como no Brasil, estão também a ignorar, indiretamente, o que tantos escritores, cientistas, pensadores e mesmo o povo tem escrito ao longo de todos os séculos passados”, reitera.
Para a tradutora, quem faz uma língua “são os seus utilizadores, primeiro de tudo, e não uma lei imposta por um Governo, que tem em vista muito mais o aspeto económico da medida, e assim acaba por desprezar por completo a identidade da língua”. Isabel crê que a justificação mediática da unificação da língua é “insuficiente”, porque, a nível fonético, “a língua variará sempre de país para país”.
A principal atitude que a tradutora proclama para todos os que forem contra a nova grafia é a de que, “enquanto cidadãos e leitores responsáveis”, se impeça a continuidade da medida, “simplesmente não compactuando com ela, não a praticando”.
Acordo otimiza a aprendizagem oral na infância e ajuda no combate à dislexia
Há agentes da língua portuguesa que conseguem assumir-se não tão contra o AO. É o caso de Idalécia Carrasco e de Daniela Braz. Idalécia é professora de Português na Escola Secundária João de Deus, em Faro. A docente acredita que a população deve mostrar mais abertura para as novas alterações linguísticas. “Nada é eterno. Há coisas bem mais importantes para se moverem tantas emoções de contrariedade. Não é um acordo ortográfico que determina o que nós somos nem as nossas emoções. Nós não perdemos a nossa identidade própria com esta mudança. Sou a favor da adaptação aos tempos que passam”, assume.
Hífen
De modo geral, as palavras prefixadas perderão o hífen. Passa a escrever-se “codependente” e “contraindicação” em vez de “co-dependente” e “contra-indicação”. Quando a palavra prefixada começa por “r” ou “s”, abandona-se também o hífen, duplicando-se antes essa letra: “antirrevolucionar” em vez do “anti-revolucionar”, por exemplo. Todavia, continuarão a existir casos em que o hífen é usado em palavras deste tipo, como quando a palavra prefixada começa por “h” (anti-herói, por exemplo) e quando a última letra do prefixo é igual à primeira letra da palavra prefixada (como “contra-ataque”). As formas monossilábicas do verbo “haver” deixam ser ligadas por hífen à preposição “de”. Escreve-se agora “há de” e não o anterior “há-de”.
A professora deixa uma ressalva para todos os que são deliberadamente contra o AO: “A vida é dialética pura. Olhemos um pouco para o início do século XX, em que, por exemplo, ‘mãe’ se escrevia com ‘i’ e ‘pai’ se escrevia com ‘e’, e farmácia com ‘ph’. É como dizia o Camões: ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’. Há três anos para cá fui fazendo sempre um trabalho com os meus alunos de adaptação ao novo acordo, e sobretudo para a abertura de mentalidades, porque a mudança na vida é constante”, sustenta.
Para Idalécia Carrasco, o AO ajudará imenso no combate aos problemas comunicativos dos jovens. “Reparemos na eliminação das consoantes. Quanto mais fáceis de dizer forem as palavras, melhor se comunicará. Alunos com dislexia poderão combater esse problema muito mais facilmente”, afirma.
Relativamente à questão prática da oralidade das palavras, Daniela Braz, terapeuta da fala, subscreve a opinião de Idalécia. “Trata-se de uma medida benéfica, sobretudo para as crianças que estão a iniciar a leitura e a escrita. Existiam palavras com fonemas (sons da fala) surdos, como por exemplo em ‘acção’. As crianças são muito curiosas e nem sempre era fácil explicar-lhes a existência do ‘c’. Agora, essa questão já não se coloca. O acordo ortográfico faz parte da evolução natural da língua portuguesa”, remata.
Aprovação está longe de ser unânime
Vários cronistas resistem à mudança linguística. Miguel Esteves Cardoso (Público), Pedro Mexia (Expresso) ou João Gonçalves (JN) sempre ignoraram a nova mudança na grafia. Outro exemplo explícito de não aprovação da medida está bem patente no regulamento do “Prémio Literário Vasco Graça Moura“, onde se lê, bem a negrito: “Não serão aceites originais segundo o denominado novo acordo ortográfico”. Esta medida deve-se ao facto de o poeta sempre ter assumido publicamente a sua posição deliberadamente fora da medida.
O AO chegou ao ensino nacional há três anos, mas muitos estabelecimentos de ensino permitiram a dupla grafia, numa fase inicial de adaptação. A partir de do dia 13 de maio de 2015, qualquer aluno que utilize a antiga grafia nos exames nacionais de Português, incorre na penalização do gesto, que será agora encarado como um “erro gramatical”, com penalizações que podem chegar aos quatro valores de desconto na prova.
O consenso é longínquo e a obrigatoriedade inaugura-se, assim, à mesma, no país. Resta saber as respostas institucionais às várias ações já em tribunal para acabar, ou reajustar o acordo.