Lucky passou quase toda a vida a ser treinada. Tinha dois espectáculos por dia. Não era feliz, mas não sabia que era uma escrava porque não conhecia outro mundo. Ficou cega pelas luzes fortes dos palcos. Will não sabe como foi apanhado. O chicote e o fogo eram uma constante. Quando não estava a trabalhar era encarcerado numa cela onde mal se mexia. Kira não teve escolha. Dava lucro e era forçada a trabalhar. Até quando lhe batiam achava que tinha feito alguma coisa mal. Lucky, Will e Kira são animais — um elefante, um leão e uma cadela. Mas esta narrativa podia bem ser sobre humanos. É essa “raiz do problema” que a realizadora Teresa Ramos quis abarcar nos 12 filmes da campanha pela abolição de animais no circo Unchainmee: “É errado. Ponto. Independentemente do sujeito, a tortura, a exploração e a diversão à conta de outro, são erradas.”
São os direitos — sejam humanos ou animais — a grande causa de Teresa Ramos. No currículo da realizadora tanto se encontram momentos de parceria com associações de defesa dos animais, como aAnimal, como se descobrem materiais feitos para a Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA). Mas foi por estar atenta à realidade animal que se apercebeu de uma lacuna na proteção deles: “Foi aprovada a lei que criminaliza os maus tratos a animais de companhia. Mas ficaram de fora as touradas e os animais de circo. As luta contra as touradas tem sido grande, mas parecia-me que os animais de circo estavam algo esquecidos”, disse ao P3.
A campanha Unchainmee é uma resposta a isso. Em 12 curtos filmes, são contadas histórias verídicas de animais, selvagens e de companhia, que depois de uma vida de exploração e maus-tratos no circo foram libertados. Os textos foram escritos pela própria realizadora, com base em notícias e artigos online, e interpretados pelos atores Rita Blanco, Adriano Luz, Maria João Luís, João Lagarto, Carla Bolito, Filipe Duarte, Ana Brandão, Ruben Alves, Mitó Mendes, Marcello Urgeghe, Manuela Couto e Diogo Amaral.
Cada um dos 12 atores interpreta um animal explorado num circo e já resgatado entretanto — e alguns casos tiveram como inspiração vídeos de resgate do circo ou da vida pós-circo. Como Will, um leão que pisou a relva pela primeira vez depois de 13 anos de encarceramento, Pepe, um macaco resgatado que descobre a felicidade quando encontra a macaca Valery, ou Shirley, que depois de 23 anos encontra e reconhece imediatamente a ex-companheira de circo Jenny (vê aqui e aqui).
“O que defendemos é a abolição da utilização de animais nos circos. Fazem-se regulamentos e reformas, mas elas não servem os direitos dos animais. Enquanto houver animais nos circos isto continua errado”, defende a criadora desta campanha que conta o apoio da Fundação José Saramago, autor que sempre defendeu os direitos dos animais. A realizadora e os actores ressalvam ser “admiradores do circo enquanto arte e espectáculo com humanos”, mas consideram “inaceitável que animais de tantas espécies continuem a ser encarcerados e forçados a atuar nos circos”.
Para já, a campanha está confinada ao online, com uma aposta na divulgação a partir das redes sociais (Facebook, Twitter, Google+), mas há parcerias a serem fechadas para divulgação noutras plataformas. Além disso, a realizadora tem já acertada a gravação dos mesmos 12 depoimentos em Espanha, em França e nos Estados Unidos da América, com atores locais. E a possibilidade de o fazer no Brasil, apesar de ser um país onde a utilização de animais no circo já está proibida por lei: “Continua a fazer sentido, porque esta é uma defesa e um conceito global, pelo qual nos devemos juntar uns pelos outros.”
Os animais encarcerados nos circos apresentam uma série de comportamentos “muito bem documentados por médicos veterinários e biólogos especializados em etologia” — como movimentos repetitivos, as estereotipias e a coprofragia, por exemplo — que “demonstram bem a vida de escravidão a que são forçados”, lê-se no texto de apresentação da campanha.
Em Portugal, a lei proíbe apenas a reprodução de espécies selvagens. O que, mesmo assim, não é cumprido, acusa o grupo de cidadãos que se associou a esta campanha: “Na altura do Natal (época mais forte dos circos), continua a ser comum ver os circos apresentarem leões e tigres bebés, para oportunidades fotográficas com espectadores, quando isso é ilegal.” Na ausência de uma lei específica, a regulamentação da utilização fica a cargo das câmaras municipais. “Tem havido avanços e câmaras como Évora e Funchal recentemente proibiram os animais nos circos. Mas o que queremos é que exista uma lei.”