Francisco Amaral tinha um desejo: ter um programa de rádio no qual pudesse partilhar “estados de alma”. Os seus estados de alma. Com o desejo em mente, desenhou o “Íntima Fracção” (IF). Passados mais de trinta anos, garante que quem o ouvia conseguia distinguir-lhe “os ‘moods’”.

“Queria que os textos e as músicas fossem uma expressão do que eu sentia semanalmente quando fazia o programa. Eu precisava daquilo para alcançar um certo equilíbrio. Não é ser arrogante, mas era como se estivesse a fazer um desenho, ou uma pintura, qualquer coisa no domínio da arte”, partilha em entrevista ao JPN.

O programa musical não se pretendia de divulgação. Era um espaço do seu autor para os seus ouvintes.

O IF arrancou na RDP em 1984, esteve para morrer aos cinco anos de idade – crédito a Miguel Esteves Cardoso, que convenceu, por telefone, Francisco Amaral a continuar -, mas sobreviveu e ganhou novo fôlego quando em 1989 Francisco Amaral passa para a TSF. “A certa altura fico um pouco desmotivado para fazer o programa na RDP. Quando a TSF me contactou, no tempo ainda do Emídio Rangel, eu disse logo que sim”, recorda Francisco Amaral.

Passou 15 anos na estação noticiosa. “Não tiveram a mais pequena intervenção ao longo dos 15 ano em que estive na TSF. Tive absoluta liberdade de criação. É algo que não posso esquecer. Que não tem preço”, sublinha.

As coisas mudaram para Francisco Amaral, quando “mudou o paradigma da TSF”, em 2003. “Quando entra a ‘playlist’, acabam com os programas antigos – o meu era um dos três mais antigos, juntamente com o “Grande Júri” e o “Flashback”. Não fazia sentido nenhum fazer o IF com uma playlist. E saí”.

Fechou-se um ciclo, mas o programa não morreu e os que o seguiam na intimidade do ouvinte, manifestaram-se: “Eu só tive consciência rigorosa da dimensão da escuta e do número de ouvintes a partir do momento em que ele parou na TSF”. Abriram-se blogues de apoio ao programa, discutiu-se uma manifestação à porta da TSF.

“Ainda há coisas que me deixam espantado. Coloco no Facebook que estou à procura de gravações antigas da Antena 1 e passado umas horas recebo uma indicação de um ouvinte da Cova da Piedade a dizer que tem uma K7 de 1988 e enviou-me a K7”, exclama.

A comunidade persiste, mas não vive em simultâneo

O IF deixou as ondas hertzianas em 2003 para se aventurar no online, quando o ‘podcast’ era um formato ainda desconhecido. Ainda voltou ao FM, na RUC, na RUM, na ESEC Rádio Online e no Rádio Clube Português, mas foi no online que ficou.

As edições começaram a espaçar-se. Mas lá iremos. Ainda estamos sintonizados na rádio. A de um “locutor de primeira”, assim encartado, que entrou no meio em 1970. Perguntamos-lhe se ainda há programas de culto. Francisco Amaral acha “que se perdeu muita coisa”.

“O sentimento de escuta simultânea. Uma das coisas que esses programas de autor e de culto tinham era que nós escutávamos o programa com a noção de o estarmos a partilhar, naquele preciso momento, com outras pessoas. Porque o ouviam àquela hora. Isso hoje em dia está pulverizado. Continua a haver programas à hora certa, mas a maioria das pessoas pode perfeitamente ouvir depois o ‘podcast’”, analisa.

A rádio mudou e hoje, além de ouvida, pode ser observada na Internet. Aí Francisco encontra outra mudança: “A rádio como eu a conhecia, e como sempre a fiz, era uma rádio para não ser vista. É outra coisa diferente, agora. Não é rádio. Parece ter o mistério da rádio descoberto. Parece ser aquilo que nós, enquanto ouvintes, sempre quisemos: ‘eu gostava de ir ao estúdio ver como é que eles fazem’. Mas isso retira muito do enorme mistério da rádio”.

E que mistério é esse? “O mistério da rádio era o facto de você se projetar nas vozes”, conta Francisco Amaral, que acrescenta “um exemplo histórico”. “A primeira grande locutora da rádio em Portugal – tinha uma voz absolutamente maravilhosa -, era conhecida pelo nome artístico, Mary. Fisicamente, era uma mulher disforme. Pesava 130 quilos. Os ouvintes não tinham esta noção. Eu também tive essa experiência. Diziam-me: ‘Eu pela sua voz fazia-o mais alto, ou de bigode’, e isso era bom, porque a voz tem de ter uma identidade própria”, descreve ao JPN.

O “podcast”, por outro lado, permite-lhe chegar mais longe. Francisco Amaral sabe, por exemplo, que tem um ouvinte na Patagónia do Chile. “É guia turístico. Ele descobriu o ‘podcast’ na net e ficou fã. Tem tudo em mp3. Vai muitas vezes esquiar e leva os headphones com o IF. Diz que tem uma sonoridade que se adequa muito àquela paisagem”. Francisco também acha que sim.

O IF é “uma coisa estranha”

A boa notícia para os amantes do programa é que Francisco Amaral está empenhado em voltar a dar uma periodicidade ao IF. Em princípio, será “semanal ou quinzenal”. Há uma plataforma desenvolvida, falta trabalhar a parte comercial. O funcionamento em pleno não é ainda previsível, mas em abril, é certo, haverá pelo menos o programa de aniversário, do 32º aniversário.

“Cheguei à conclusão de que as pessoas têm razão. Porque é que eu não faço, não é? Eu digo porquê. Porque cheguei a um ponto em relação ao programa em que tenho uma pretenção de uma exigência tal… Eu podia fazer o programa facilmente. Chego ali ao estúdio e não tenho dificuldade. Mas não é isso. Quando passei a editar digitalmente passei a poder fazer muito mais coisas e parece que nunca estou satisfeito com aquilo”.

Francisco Amaral consente que a sua obra já se confunde com a do criador. Foi numa entrevista em que lhe fizeram a pergunta que tomou consciência.

“Não posso dizer mal desta coisa que não sei bem o que é. Antigamente era filha, agora é, segundo eu, uma coisa estranha. Tenho dificuldade em libertar-me da ‘Íntima Fracção’. Dizer: ‘Vou acabar com isto. Já não estou a fazer nada’. Não tenho coragem para dizer: ‘a partir de agora acabou!’.

Porquê? É um mistério. Como a rádio.