Foi há 10 anos que Gisberta Salce Junior foi abandonada, ainda com vida, dentro de um fosso de um edifício, no Porto, onde acabou por morrer. Era lá que vivia. Tinha fugido de uma comunidade terapêutica, “O Lugar da Manhã”, em Setúbal. Antes, tinha estado internada no Hospital Joaquim Urbano, no Porto. Tinha SIDA. Em 2005, diagnosticaram-lhe, ainda, tuberculose pulmonar, pneumonia e staphylocoucus aureus e candidíase laríngea.

Gisberta chegou a Portugal com 20 anos. Quis refugiar-se de uma vaga de homicídios, em São Paulo, a transexuais. Ironicamente, viria a ser essa a causa da sua morte: a transexualidade.

A transexual dirigia-se para o prédio abandonado onde vivia, quando, pela primeira vez, foi agredida por um grupo de jovens menores. Gisberta foi, durante vários dias, insultada e violentada. As sucessivas agressões acabaram por ditar a sua morte.

Este desfecho “é o espelho do preconceito que se sentia na altura e ainda hoje”, refere João Paulo da “Portugal Gay“. A opinião é partilhada por João Oliveira, investigador em questões LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), do Centro de Investigação e de Intervenção Social do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), que diz que “o caso de Gisberta é um efeito da política do esquecimento dos direitos das pessoas ‘trans’, migrantes, toxicodependentes e outras populações excluídas e subalternizadas”.

Em 2006, o sucedido fez correr muita tinta. A forma como os órgãos de comunicação social trataram o caso foi motivo de polémica por parte dos defensores dos direitos LGBT. João Paulo acredita que “as notícias não refletiram o preconceito transgénico, mas refletiram o que a sociedade em geral não quer ver”.

“As primeiras notícias nem sequer travavam a Gisberta como uma mulher transexual, mas sim como uma pessoa sem-abrigo. Depois, deixou de ser sem-abrigo e passou a ser um travesti. Só no final, é que já se falava em Gisberta como mulher transsexual”, recorda o membro da “Portugal Gay”. João Oliveira vai mais longe e fala de “uma segunda morte, mediática” marcada pela “ignorância e falta de informação sobre as questões de sexualidades e de género”.

Sérgio Vitorino, fundador da “Panteras Rosa“, acompanhou de perto a história de Gisberta e garante que batalhou para que o caso não caísse no esquecimento. Sérgio lamenta que a abordagem do caso se tenha centrado no facto da vítima “ser seropositiva, ser uma pessoa que recorria ao trabalho sexual para sobreviver, ser toxicodependente, ser imigrante brasileira”.

“O caso de Gisberta, sendo extremo, não é assim tanto uma exceção. Logo dois anos depois da morte de Gisberta, houve outro assassinato de uma pessoa ‘trans’, em Lisboa, chamada Luna, que ainda hoje está por esclarecer”, alerta o fundador da “Panteras Rosa”.

O mesmo acontece com a transexual que foi assassinada no Porto. Até hoje, o caso não evoluiu e nada aconteceu aos jovens, que, alegadamente, assassinaram Gisberta. O membro da Panteras Rosa lembra que, na altura, a morte foi dada, pelo Tribunal, como “afogamento”.

“O caso Gisberta marcou um antes e um depois”

A história de Gisberta deu azo a debate sobre preconceito, descriminação e transfobia e veio a marcar o início de um caminho a percorrer: a defesa dos direitos dos transexuais. Dez anos depois, Gisberta é um marco na mudança de mentalidades.

João Paulo, membro da “Portugal Gay”, reforça que o caso “veio dar visibilidade” às questões LGBT.  O investigador João Oliveira, por sua vez, indica que o caso deu origem a várias campanhas internacionais sobre a violência e à criação de inúmeros movimentos ativistas sobre questões de transexualidade.

A grande mudança foi na mentalidade dos próprios transexuais, segundo Sérgio Vitorino. O membro da “Panteras Rosa” afirma que o caso teve um impacto muito grande nas gerações seguintes das pessoas ‘trans’. “Hoje em dia, há toda uma geração que está a viver mais às claras, a criar as suas próprias organizações, a falar em voz própria”, considera.

Apesar das reações positivas que possam ter surgido, Sérgio Vitorino não tem dúvidas que “este trabalho está longe de estar terminado”. João Oliveira defende que “é necessário alterar a lei da identidade de género da dependência de uma autorização de um técnico/equipa de técnicos de saúde e dar esse direito às pessoas ‘trans’, por escolha, para mudarem o nome e o seu género, de um ponto de vista formal”.

Os três defensores dos direitos LGBT, dão o exemplo daquilo que se passa nos hospitais. O membro da Portugal Gay explica que, nessas situações, “insistem em tratá-las pelo nome de nascença”. Sérgio Vitorino conta que “as pessoas ‘trans’ continuam em algumas unidades de saúde de referência, a ser vistas como doentes mentais”.

“As expressões de género ‘trans’ não são doença nem podem ser tratadas como tal e reconhecer isso é potenciar uma democracia de género com espaço para todos nós, descolonizando-nos das vontades de médicos”, apela o investigador João Oliveira.

João Paulo diz que ainda há “atrasos no comportamento social”, em relação a esta questão. O que falta fazer? Na opinião daquele, educar: “a lei de educação sexual é praticada num modelo ‘heterosexista’”.

“Hoje a sociedade portuguesa está a aprender a conviver com os seus elementos LGBT”, nota João Oliveira. Para Sérgio Vitorino, o caminho passa por deixar de “viver o mito de que só há homens e mulheres”. Afinal, “assim como não há duas pessoas fisicamente iguais, também não há duas pessoas com vivências de género exatamente iguais”.

Artigo editado por Sara Gerivaz